Machado de Assis e Caxambu
Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 05/04/1888 a 29/08/1889
16 de junho
Bons dias!
Recebi um requerimento, que me apresso em publicar com o despacho que lhe dei:
Aos pés de V Exa. vai o abaixo assinado pedir a coisa mais justa do mundo.
Rogo me preste atenção por alguns instantes; não quero tomar o precioso tempo de V Exa..
Não ignora V. Exa. que, desde que nasci, nunca me furtei ao trabalho. Nem quero saber quem me chama, se é pessoa idônea ou não; uma vez chamado, corro ao serviço. Também não indago do serviço; pode ser político, literário, filosófico, industrial, comercial, rural, seja o que for, uma vez que é serviço, lá estou. Trato com ministros e amanuenses, com bispos e sacristães sem a menor desigualdade. Cheguei até (e digo isto para mostrar atestados de tal ou qual valor que tenho), cheguei a fazer aposentar alguns colegas, que, antes de mim, distribuíam o trabalho entre si, distinguindo-se um, outro sobressaindo, outro pondo em relevo alguma qualidade particular. Não digo que houvesse injustiça na aposentadoria: estavam cansados, esta é a verdade. E para a gente de minha classe a fadiga estrompa e até mata.
Ficando eu com o serviço de todos, naturalmente tinha muito a que acudir, e repito a V. EXa. que nunca faltei ao dever. Não tenho presunção de bonito, mas sou útil, ajusto-me às circunstâncias e sei explicar as idéias.
Não é trabalho, mas o excesso de trabalho que me tem cansado um pouco, e receio muito que me aconteça o que se deu com os outros. Isto de se fiar uma pessoa no carinho alheio, na generalidade dos afetos, é erro grave. Quando menos espera, lá se vai tudo; chega alguma pessoa nova e (deixe V. Exa. lá falar o João) ambas as mãos da experiência não valem um dedinho só da juventude.
Mas vamos ao pedido. O que eu impetro da bondade de V. Exa. (se está na sua alçada) é uma licença por dois meses, ainda que seja sem ordenado; mas com ordenado seria melhor, porque há despesas a que acudir, a fim de ir às águas de Caxambu. Seria melhor, mas não faço questão disso; o que me importa é a licença, só por dois meses; no fim deles verá que volto robusto e disposto para tudo e mais alguma coisa.
Peço pouco, apenas um pouco de descanso. Deus, feito o mundo, descansou no sétimo dia. Pode ser que não fosse por fadiga, mas para ver não era melhor converter a sua obra ao caos; em todo o caso a Escritura fala de descanso, e é o que me serve. Se o Supremo Criador não pode trabalhar, sem repousar um dia depois de seis, quanto mais este criado de V. Exa.?
Não faltará quem conclua (mas não será o grande espírito de V. Exa.) que, se eu algum direito tenho a uma licença, maiores e infinitos têm outros colegas, cujo trabalho é constante, ininterrupto e secular. Há aqui um sofisma que se destrói facilmente. Nem eu sou da classe da maior parte de tais companheiros, verdadeira plebe, para quem uma lei de Treze de Maio seria a morte da lavoura (do pensamento); nem os da minha categoria têm a minha idade, e, de mais a mais, revezam-se a miúdo, ao passo que eu suo e tressuo sem respirar.
Contando receber mercê, subscrevo-me, com elevada consideração, de V. Exa. admirador e obrigado verbo Salientar.”
O despacho foi este:
Conquanto o suplicante não junte documentos do que alega, é, todavia, de notoriedade pública o seu zelo e prontidão em bem-servir a todos. A licença, porém, só lhe pode ser concedida por um mês, embora com ordenado, porque, trabalhando as Câmaras Legislativas, mais que nunca é necessária a presença do suplicante, cujo caráter e atividade, legítima procedência e brilhante futuro folgo em reconhecer e fazer públicos. Se tem trabalhado muito, é preciso dizer, por outro lado, que o trabalho é a lei da vida e que sem ele o suplicante não teria hoje a posição culminante que alcançou e na qual espero que se conservará honrosamente por longos anos, como todos havemos mister. Lavre-se portaria, dispensados os emolumentos.
Boas noites.
Texto-fonte:
Obra Completa de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.
Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 05/04/1888 a 29/08/1889 http://www.machadodeassis.
Colaboração: Pepe