Por Mara Poljiz
Moradores e comerciantes de Brasília reclamam da insegurança provocada
pelo uso e tráfico do entorpecente, um problema hoje nacional. Programa do GDF
fará dois anos de existência e atendeu, só em 2012, mais de 26 mil dependentes
químicos
Foto: Correio Braziliense |
Em 31 de agosto, fará dois anos
que o governo lançou o Plano de Enfrentamento ao Crack no Distrito Federal. Com
um orçamento de R$ 65 milhões para serem investidos em quatro anos, o Executivo
local previa o desenvolvimento de ações que envolvessem setores, como a saúde,
a assistência social, a educação e a segurança. Desde então, houve avanços, mas
o programa ainda enfrenta problemas como, por exemplo, a recuperação de dependentes
químicos. Moradores e comerciantes do Plano Piloto se queixam da insegurança e
denunciam a presença constante de usuários do entorpecente em diversos pontos
da cidade, principalmente da área central de Brasília, como o Setor Comercial
Sul.
Viciados, entre homens, mulheres
e até crianças, continuam nas ruas expostos ao preconceito da sociedade, à
violência e ao risco de serem cada vez mais recrutados pelo tráfico de drogas.
―A gente enxerga crianças se drogando, mas nem o Conselho Tutelar aparece quando
a gente liga‖, reclama a advogada Letícia Pires, 44 anos. Ela é síndica de um
bloco da 102 Sul, próximo à Rua das Farmácias, onde a circulação de dependentes
químicos se tornou frequente.
Para outra moradora da região, o
vício em crack, um fenômeno nacional, desafia a capital federal. ―Eu acho que
essa situação está se agravando ano a ano. Tenho muito medo e nunca mais saí de
bolsa para ir ao comércio por causa do risco de assalto por aqui. Não é uma
coisa fácil de fazer, mas o governo tinha que oferecer um tratamento de saúde e
dar alguma ocupação para eles. Aqui, eles ficam ociosos e largados à própria
sorte‖, acredita.
Avanço
Quem circula pelas ruas e
avenidas do Plano Piloto, pela QNN 3 de Ceilândia ou pelas regiões
administrativas mais afastadas encontra facilmente viciados em crack,
subproduto da cocaína de alto poder de destruição. Eles ficam em becos, na
porta de padarias ou nos estacionamentos públicos. Qualquer dinheiro conseguido
com vigília de carros, esmolas ou furtos vira pedra de crack. Os dependentes
ficam dias sem dormir, tomar banho ou se alimentar direito. Na QNN3, por
exemplo, alguns se abrigam em bueiros, como denunciado em série de reportagens
publicadas pelo Correio Braziliense.
Para a vice-presidente do
Conselho Comunitário da Asa Sul, Eliete Bastos, o avanço do consumo e do
tráfico do entorpecente aparece entre as principais reclamações dos moradores
do bairro. ―A gente vê muito no centro da cidade e em algumas quadras perto da
102, da 302 e da 109 Sul. São pontos de tráfico
também conhecidos da polícia. Não
sei se o caminho correto é tirá-los (os usuários de droga) de lá à força, mas
acho que está havendo uma deficiência de política pública mais efetiva para
resolver essa questão‖, avaliou.
Foco na prevenção
Apesar das dificuldades no
combate ao crack, o secretário de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, Alírio
Neto, defende que a capital do país é a unidade da Federação com melhor
estrutura para atender os dependentes químicos. Desde o lançamento do Plano de
Enfrentamento ao Crack, ele destaca a construção de sete centros
especializados, sendo cinco deles com atendimento 24 horas e um setor de
acolhimento para viciados.
Segundo Alírio, houve avanço a
partir da criação de 60 leitos para desintoxicação em hospitais. Não havia nenhum.
Outro destaque vai para o convênio com comunidades terapêuticas, com 2.070
pessoas atendidas desde 2011. ―Não existe no Brasil um Estado tão avançado no
combate às drogas como o DF. O desafio é grande demais, e não há soluções
mágicas.‖ O foco também é a prevenção. Neste ano, 230 mil alunos participaram
de palestras, oficinas e peças de teatro sobre o tema.
A Secretaria de Saúde informou
que, no primeiro quadrimestre, houve 27.344 atendimentos nos centros. Em 2012,
foram 26,6 mil. Hoje, 4.483 pessoas são acompanhadas. ―A unidade de acolhimento
é um dispositivo para trabalhar a reconstrução do projeto de vida dos
dependentes, mas eles são marginalizados. A sociedade quer uma resposta para o
crack, mas desde que seja bem longe dela‖, disse Karime Porto, da Diretoria de
Saúde Mental.
Personagem da notícia
“Ela estava pele e osso”
A dona de casa Oscarina Alves
Coelho Rodrigues vê de perto a devastação provocada pelo crack. Há cinco anos,
descobriu que a filha Karine Gisele Rodrigues, 23 anos, era dependente química.
Na rua, a jovem se tornou mãe de cinco filhos. Durante a última gestação, a
garota ficou internada no Hospital Materno Infantil (Hmib), onde permaneceu por
dois meses no ano passado. Ela passou por um processo de desintoxicação na rede
pública de saúde, mas fugiu da unidade de saúde.
Karine passou por várias
comunidades terapêuticas, mas nunca conseguiu largar o vício. Hoje, Oscarina
tenta pela quinta vez a reabilitação da filha, agora numa clínica em Catalão,
Goiás. Desde novembro do ano passado, ela paga R$ 1,5 mil por mês para manter a
filha no local. ―Ou internava ou via minha filha morta. Ela estava pele e
osso‖, contou.
Oscarina mantém a filha internada
com dificuldade. Até comida falta em casa. ―Tem dia que não tem nem arroz para
comer. Nunca pensei que eu fosse chegar ao fundo do poço por causa do crack‖,
lamentou. Oscarina aguarda uma decisão favorável da Justiça para que o GDF
custeie o tratamento da filha.
―Cada vez que eu falo, eu choro
demais. Uma mãe jamais quer ver sua filha se destruir e ficar com as mãos
atadas. Meu sonho era ver a minha filha livre do vício‖, desabafou, aos
prantos.
CARA A CARA
Maurício Gadbem, psiquiatra, psicanalista e professor da
Universidade do Vale da Sapucaí, de Minas Gerais
―Sou a favor da internação
compulsória em uma clínica com equipe multidisciplinar. Não é jogar na clínica
e dar remédio para ele, mas tratar todos os aspectos da vida do paciente.
Quando a pessoa está muito envolvida com a droga, ela não tem capacidade de
discernimento e coloca a vida dele e a dos outros em risco. Tenho mais de 20
anos de experiência e só vi gente agradecendo por terem internado contra a
vontade. Na minha experiência, todos os que têm oportunidade de um tratamento
sério se curam. O modelo de CAPS-AD é bom, mas ainda insuficiente. Não basta
levar para um hospital para desintoxicação, porque em 10 ou 15 dias de
internação não dá para criar vínculo algum com um dependente químico. As
políticas públicas de hoje são muito confusas e burocráticas, de difícil
acesso. Também não há profissionais em número e capacitados para serem
contratados. Há muita suferficialidade e pouco conteúdo nos discursos.‖
Secretário de Justiça, Direitos
Humanos e Cidadania do Distrito Federal
―Não acho que seja possível
conter o avanço das drogas sem ser por meio do esclarecimento, da cultura e da
educação. Já se tentou de tudo antes e, até agora, nada deu certo. O que
algumas unidades da Federação estão fazendo é um trabalho de higienização.
Recolhem as pessoas nas ruas, jogam dentro de um hospital para fazer a
desintoxicação e dizem que estão fazendo internação compulsória. Enfiam um
sossega leão nelas e fazem com que usem medicamentos durante 15 dias. Tudo isso
com o paciente inconsciente e sob o efeito de drogas. Quando a pessoa ficar
consciente, é que a gente vai ver se ela vai se recuperar ou não. Infelizmente,
os números não são de Brasília, mas do mundo. De cada 10 dependentes químicos,
quatro vão morrer rapidamente, três terão recaídas e outros três vão se
recuperar. O nosso trabalho é de prevenção.‖
Matéria veiculada no jornal Correio Braziliense em 24/07/2013