quinta-feira, 27 de novembro de 2014


'A arte vem cá de dentro', diz bailarina de 86, através de festival de circo
Caxambu recebeu a 2ª edição do Festival Mundial do Circo.
Após mais de 60 anos dedicados à arte, artista fez sua 'despedida'.

“A arte vem cá de dentro”, afirma com a mão no peito a bailarina Maria Regina de Souza Branco. Com 86 anos, mais de 60 deles foram dedicados a ensinar crianças e jovens a dançar, interpretar e provocar risos em outros por meio da arte. Em 2014, parte da despedida da professora aconteceu durante o Festival Mundial de Circo, que realizou sua segunda edição em Caxambu(MG). A sala espelhada onde as bailarinas ensaiaram seus passos durante anos recebeu a oficina de palhaço do evento este ano, última aula de arte ‘encenada’ no local. Sentada no salão vazio, a professora de Caxambu descreve a vida que teve nos palcos e picadeiros do país e a mágica da arte.
Com 86 anos, dona Regina ensinou balé clássico por mais de 60 anos (Foto: Samantha Silva / G1)Com 86 anos, dona Regina ensinou balé clássico por mais de 60 anos (Foto: Samantha Silva / G1)
Dona Regina fala de sua rotina como se encenasse um espetáculo. De gestos teatrais, ela conta que passa seus dias de acordo com suas crenças e valores. É vegetariana há 70 anos, porque “Deus disse: ‘não matarás’. E, portanto, minhas ações não colaboram para nenhum ato de morte”. Mora numa casa de quase três cômodos: uma sala espaçosa que serve como quarto e espaço para seus mais de 600 discos de música clássica e objetos artísticos, banheiro e uma pequena cozinha.
Para manter saúde, bailarina 'planta bananeira' todos os dias em Caxambu (Foto: Samantha Silva / G1)Para manter saúde, bailarina 'planta bananeira'
todos os dias (Foto: Samantha Silva / G1)
Pratica yoga e ‘planta bananeira’ todos os dias no canto de sua casa, já que leva a sério a teoria da posição de inversão da prática. “Quando ficamos de cabeça para baixo, o sangue circula por todo o corpo e irriga o cérebro, aumentando a longevidade. Se a mente envelhece, todo o corpo envelhece junto”, explica. Quando o médico mandou ela parar de ‘plantar’ bananeira porque estava forçando a coluna vertebral, que foi se fragilizando com a idade, dona Regina inventou um método para continuar a prática. Usa dois pedaços de espuma rígidos para apoiar os ombros, e com isso, ao invés de forçar a coluna, joga o peso do corpo nos ombros. Assim como aprendeu na dança, com criatividade e técnica, os problemas vão se resolvendo e a bailarina vai vivendo a vida como deseja.
Vida para a arte
Foi na primeira edição do Festival Mundial do Circo, realizado em 2013 em Caxambu, que dona Regina fez uma de suas últimas apresentações. Ela saiu no cortejo que abriu o festival na cidade e depois disso, dirigiu apenas um espetáculo de balé e uma peça de teatro. A dançarina nasceu em Caxambu, mas a maioria de seus passos foram encenados no Rio de Janeiro (RJ).
Começou a dançar com 12 anos de idade e decidiu por subir ao palco com 17 anos. A escolha, feita em uma época em que a vida de artista não era tão bem vista na sociedade, rendeu a ela a ruptura com a família.  “E assim eu fui para a rua e comecei a viver de dança. Dancei em todos os teatros do Rio, circos. O que aparecia eu fazia”, lembra.
Retrato mostra Regina dançando na juventude (Foto: Samantha Silva / G1)Retrato mostra Regina dançando na juventude
(Foto: Samantha Silva / G1)
Em uma sala de sua galeria (a casa herdada do pai em Caxambu foi transformada num pequeno aglomerado de salas e imóveis), dona Regina mostra a coleção de certificados que adquiriu. A vida de artista começou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e continuou mundo afora com estudos de todas as formas do balé clássico. Ela aponta até o certificado que tem de bailarina clássica fornecido pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Após o término do segundo casamento (dona Regina teve seis durante a vida), a arte passou a ser fonte de renda para cuidar das duas filhas que teve no relacionamento. “Nunca faltou trabalho, graças a Deus. Naquela época haviam muitas peças de teatro, portanto eu pegava desde papeis nos teatros até apresentações nos avancenes dos palcos, feitas enquanto a cortina se abaixava para a troca dos cenários”, lembra. Desenvolveu sua técnica com bailarinas famosas no Rio de Janeiro à época, como a russa Nina Verchinina e a ucraniana Eugenia Feodorova. Deu aulas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e até em outros países.
A arte vem cá de dentro. Se você não sente, não acontece nada. Você não transmite"
Maria Regina Branco, bailarina
A volta para Caxambu se deu há 10 anos, quando após ser assaltada três vezes de forma violenta desistiu da vida na cidade maravilhosa. “Depois de três assaltos no Rio de Janeiro, com uma [arma calibre 38] apontada na minha testa, não dava mais pra viver naquela cidade. Eu amo aquela cidade, mas não dava. Aí eu vim pra cá, vendi tudo que eu tinha e investi aqui. Dizem que a gente não deve colocar todos os ovos na mesma cesta, mas eu coloquei.”
Arte para a vida
Dona Regina explica o que considera mais importante em qualquer espetáculo artístico: o sentimento. “Arte e religião não se desassociam, estão sempre unidos. Se você não tiver um profundo sentimento religioso e amor, você não faz arte. A arte vem cá de dentro. Se você não sente, não acontece nada. Você não transmite”, explica.
A bailarina conta de uma professora que teve no Rio de Janeiro. Após estudar na França por um ano, a bailarina fez a apresentação de uma tragédia grega.  Para Regina, a técnica dela estava perfeita, mas sua interpretação não tinha sentimento e a peça não emocionou ninguém. “Aquela tragédia foi uma tragédia. Eu não senti nada. E era em português. Portanto, não adianta ser tecnicamente perfeito se você não sentir uma palavra do que você falou”, explica.
Após 60 anos de aulas, Regina aposentou carreira de professora de dança e teatro em Caxambu (Foto: Samantha Silva / G1)Após 60 anos de aulas, Regina se aposentou da
carreira de professora de dança em Caxambu
(Foto: Samantha Silva / G1)
Para Regina, o melhor exemplo da sinceridade da arte são as crianças, principal plateia de um festival de circo. “Aquilo que você faz você tem que colocar você. Se você não for na frente de tudo, nada funciona. E sabe quem faz isso muito bem? As crianças. A criança nunca é falsa, ela faz porque ela sente, aí ela vai e faz. Uma das melhores peças de teatro que fiz foi com crianças. Porque ali no palco elas são [os personagens]. Se para a criança que brinca com um objeto aquilo é um aviãozinho, pra ela aquilo de fato é um avião.”
No salão vazio e espelhado da academia de dança, dona Regina conta que pretende deixar o Brasil. Após anos vivendo de arte, prepara a documentação para viajar e enfim dependurar as sapatilhas de professora de dança. “Só não vou parar de dançar nunca. Meu corpo faz tudo que eu desejo que ele faça. É só querer. Não posso viver sem dança, senão estou morta”. E após uma pausa para pensar no que falou, ela finaliza o ato. “Acho que mesmo morrendo, eu ainda vou fazer um ‘developezinho’ [passo de dança no balé], esticar a perna e aí...”, brinca, simulando a posição de coreografia que fará ao deixar a vida.
Chocobrothers se apresentam no Festival Mundial do Circo em Caxambu (Foto: Samantha Silva / G1)Chocobrothers se apresentam no Festival Mundial do Circo em Caxambu (Foto: Samantha Silva / G1)
A arte no festival
O espetáculo “Chocobrothers” é encenado por três artistas circenses no Parque das Águas em Caxambu. Com coreografias de dança e trilha dos anos 1970, o grupo brinca interpretando três artistas que já foram famosos e hoje tentam esticar o glamour que já não existe mais. As encenações mostram cenas atrapalhadas dos personagens, meio enferrujados pelo período de “decadência”.
Crianças assistem apresentação durante Festival Mundial de Circo em Caxambu, MG (Foto: Samantha Silva / G1)Crianças assistem apresentação durante Festival
Mundial de Circo em Caxambu
(Foto: Samantha Silva / G1)
André Carvalho, que interpreta o “glamouroso” apresentador James no espetáculo, conta que faz circo há cerca de 15 anos. Antes disso, foi engenheiro em uma petroquímica e trabalhou com publicidade, até descobrir que sua vocação era arrancar risos da plateia. Hoje com 42 anos, formou um grupo para espetáculos circenses.
A maior preocupação em sua função, segundo ele, é fazer rir sem ser ‘engraçadinho’. “Tem que saber conduzir. Uma piada dura alguns segundos, mas o espetáculo tem que durar 45 minutos”, completa. A apresentação encenada pelos três é acompanhada por risadas constantes. No fundo da plateia, durante a pausa para a troca de cena, um pequeno menino grita alto: ‘eu quero mais’. A aprovação sincera da criança dá a bênção para a interpretação do artista, que do palco não arranca risos nem lágrimas sem sentimento.
André Carvalho se apresenta com os Chocobrothers em Caxambu, MG (Foto: Samantha Silva / G1)André Carvalho durante apresentação com os Chocobrothers em Caxambu, MG (Foto: Samantha Silva / G1)
O festival
O Festival Mundial do Circo levou cinco espetáculos artísticos, mostra de filmes e oficinas para Caxambu entre os dias 18 e 23 de novembro. Mais de duas mil pessoas lotaram as apresentações circenses durante os cinco dias de evento e todas as atrações foram gratuitas. O festival realizou sua segunda edição em Caxambu este ano e ainda terá ao menos mais uma edição do evento na cidade, que será realizada em 2015.