A crise de água não é consequência apenas de fatores climáticos; é também um problema de gestão e planejamento. É importante aprender com os erros do passado e aproveitar o momento para planejar um futuro melhor, que consiste necessariamente em tratar a água como um bem estratégico para País. Nesse contexto, é preciso integrar a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) com as demais políticas públicas. É fundamental definir as prioridades de uso da água, levando-se em consideração as necessidades básicas do País e as especificidades de cada região.
Apesar de ser um recurso natural renovável, a água é limitada e a sua quantidade é variável de região para região. À medida que a economia de um país cresce e que melhora a distribuição de renda da população, a tendência é que a demanda por esse recurso aumente. Como a oferta de água é variável, para evitar conflitos e problemas hídricos é importante planejar e fazer a gestão desse recurso. Isto é, compatibilizar a oferta com as demandas de modo a não faltar água para ninguém.
As demandas por água são múltiplas e vêm de diversos setores da sociedade, todos eles importantes. A lei 9.433/97, no seu capítulo I, diz que: "em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais". Deve-se, entretanto, caracterizar o que é consumo humano e definir um valor-base para o consumo per capta para evitar os desperdícios desnecessários.
Definir valores de uso de referência para os setores consiste em estabelecer métricas, que devem estar muito claras para a sociedade, para que os conflitos sejam minimizados Em situação de escassez hídrica, em que a disponibilidade de água é limitada e geralmente insuficiente, os usos (urbano, rural, animal, irrigação, industrial ou elétrico) devem ser muito bem quantificados e equacionados. A essas demandas setoriais, é preciso ainda acrescentar a demanda ecológica. Ou seja, é preciso manter no rio uma quantidade de água mínima capaz de manter as funções oferecidas pela água, garantindo as condições mínimas de manutenção de ecossistemas aquáticos.
A gestão dos recursos hídricos deve ser feita considerando-se a bacia hidrográfica como unidade territorial de referência. A bacia hidrográfica é uma área onde toda precipitação recebida escoa para um rio principal ou seus afluentes. Ela pode ter diferentes formas e tamanhos. Em síntese, todos nós vivemos em uma bacia hidrográfica.
O Brasil está dividido em 12 regiões hidrográficas e milhares de pequenas bacias. A bacia do rio São Francisco, por exemplo, drena uma área de aproximadamente 641.000 km². O São Francisco é o rio principal, classificado como de primeira ordem. Ele tem vários afluentes diretos, como o rio Paracatu, que por sua vez tem vários afluentes. Não se deve deixar de fazer também a gestão dos recursos hídricos nos rios de maior ordem, que formam as microbacias. É nessas bacias onde é realmente possível constatar os conflitos ou problemas de disponibilidade hídrica.
Os estudos indicam que cerca de 70% da superfície terrestre é coberta com água*¹. Estima-se que o volume de água existente na terra seja em torno de 1.386.000.000 km³. Essa quantidade de água é praticamente constante. Ou seja, em escala global, a quantidade de água não é variável com o tempo. É muito difícil imaginar o que são 1.386.000.000 km³ de água. Para tentar exemplificar, imagine que se toda essa água fosse colocada em um campo de futebol, que tem um hectare de área, seria formada uma coluna de água com uma altura de 138.600.000.000 km*².
Infelizmente, nem toda essa água está prontamente disponível para uso. Os oceanos concentram 97,5% da água existente no planeta. Da porção referente à água doce – os 2,5% restantes –, 76,8% estão nas calotas polares e geleiras, 22,7% são água subterrânea e o 0,5% restante vem de outras fontes, incluindo 3,5% dos rios.
Se a quantidade de água na terra é constante, por que há conflitos? Na verdade, a quantidade é constante em escala global, mas localmente é muito variável. A água existente na Terra está sempre em movimento. A maior parte se movimenta muito lentamente, mas a porção que está mais disponível para o nosso uso, as águas superficiais, tem variações significativas em períodos de tempo curtos – dias, semanas ou meses. Essa água é dependente das chuvas. Assim, em certo ano, em um determinado local, a quantidade de água pode ser suficiente para atender a todas as demandas e no ano seguinte ser insuficiente. Outro aspecto importante é que as demandas são crescentes. Os conflitos surgem sempre que a demanda for maior que a oferta, a gestão não for adequada e as prioridades não estiverem bem definidas.
Para compreender a dinâmica da água, é muito mais interessante analisar o seu comportamento nos seus diferentes compartimentos (solo, atmosfera etc.), pois dessa forma é possível incluir o ciclo hidrológico na análise, trazendo uma visão de renovação da água e não de aumento da sua quantidade.
A vazão média anual de todos os rios do mundo é da ordem de 40.000 a 50.000 km³/ano. No Brasil, os recursos hídricos de superfície correspondem a uma vazão média da ordem de 5.676 m³/ano, ou cerca de 12% do total mundial, podendo chegar a mais de 16% se as vazões dos rios provenientes de países vizinhos forem contabilizadas.
Em geral, esses números levam a uma análise simplista de que o Brasil é um país privilegiado em termos de disponibilidade hídrica. Essa afirmativa, entretanto, é relativa, pois depende da região analisada. A distribuição geográfica desses recursos é bastante irregular. A região Norte, com 8,3% da população, dispõe de 78% da água do País, enquanto o Nordeste, com 27,8% da população, conta com apenas 3,3%.
Apesar da grande reserva de água doce do Brasil, a retirada total de água no País equivalia, em 2010, a apenas 0,9% do total disponível. Porém, não se deve avaliar essa informação de forma isolada. Ela deve ser contextualizada, levando-se em consideração a região e a relação oferta/demanda.
Para que a gestão da água não se torne gestão de conflitos, é importante utilizar os conhecimentos técnicos e científicos para subsidiar os tomadores de decisão. Nesse contexto, o monitoramento é fundamental, pois não se pode gerenciar aquilo que não se conhece.
É fato que a agricultura é fortemente dependente de água. Mas também é fato que ela não pode ser responsabilizada pela crise hídrica. Quando se refere ao uso da água, é fundamental diferenciar a agricultura de sequeiro da agricultura irrigada. Dos 75,9 milhões de hectares plantados no País (excluindo pastagem), apenas 6 milhões são irrigados – cerca de 8% do total. A agricultura de sequeiro depende apenas da água da chuva. Ou seja, hidrologicamente, ela apresenta um comportamento similar ao de qualquer vegetação nativa e não interfere na redução da disponibilidade hídrica.
Contabilizando-se todas as outorgas, ou seja, todas as vazões retiradas para os diferentes usos, 54% do total se destinam à produção de alimento, na qual a irrigação é utilizada como instrumento de aplicação de água. Esse número, apresentado na forma de porcentagem, parece grande, mas em valor absoluto, comparado com a vazão média natural de longo período*³, é muito pequeno, representando apenas 0,47%. Para fins de gestão dos recursos hídricos, entretanto, o valor é importante e deve ser contabilizado. Além disso, são poucos os locais onde a agricultura compete diretamente com o setor urbano pelo uso da água. E onde isso ocorre, na maior parte das vezes, as demandas coexistem de forma harmônica.
O desafio atual da agricultura irrigada é garantir um suprimento adequado e regular de alimentos para a sociedade com o menor consumo de água possível. A alocação de água para fins agrícolas gera benefícios sociais, econômicos e ambientais que não são apropriados somente por um usuário, mas por toda a sociedade.
De toda a área agricultável existente no País, 25,2% ainda não foi utilizada. Isto é, existem alguns milhões de hectares de solos aptos para expansão e desenvolvimento anual de agricultura em bases sustentáveis. De toda a área plantada e de pastagem, a agricultura irrigada ocupa uma parcela insignificante, representando apenas 2,5% desse total. E o uso da água é ainda mais insignificante.
O fato é que utilizamos muito pouco dos nossos recursos hídricos. Mas é preciso criar mais valor e bem-estar com os recursos disponíveis. Isso não significa, é claro, incentivar a cultura do desperdício. É importante definir as prioridades de uso da água nas bacias e lançar um olhar mais atento para aquelas que já enfrentam problema de disponibilidade de água. A gestão dos recursos hídricos é fundamental para que os demais setores tenham segurança hídrica. Embora a situação hídrica seja confortável na maior parte do País, é importante não perder de vista a eficiência de uso da água nas diversas atividades. Com planejamento e gestão dos recursos hídricos, não haverá crise hídrica.
*1 - De acordo com estudos recentes publicados na revista Science, de 30 a 50% da água existente na terra tem mais de 4,5 bilhões de anos. Ou seja, é mais antiga do que a terra e do que o próprio sistema solar. O restante da água veio de cometas e asteroides que se colidiram com a Terra.
*2 - Essa altura equivale a 924 vezes a distância da Terra ao sol. A luz gastaria 5,4 dias para percorrer essa distância. Esses números são muito grandes e difíceis de imaginar. Infelizmente, apenas uma parte dessa água está facilmente disponível para uso.
*3 – Vazão natural: É aquela vazão que ocorreria na bacia hidrográfica se não houvesse qualquer interferência humana.
Lineu Neiva Rodrigues
Pesquisador da Embrapa Cerrados e coordenador da rede Agrohidro.
Fonte: Sindicato Rural de Caxambu
http://sindicatoruraldecaxambu.blogspot.com.br/2015/05/agua-na-agricultura-com-planejamento-e.html