quarta-feira, 8 de julho de 2020

DOCE LEMBRANÇA CAXAMBUENSE



DOCE  LEMBRANÇA  CAXAMBUENSE

Maria de Lourdes Lemos


Imagem meramente ilustrativa. Arquivo Palace Hotel



            Como é bom ter tido bons momentos vividos na infância e na adolescência e poder revivê-los  em  nossos refúgios interiores, quando a  memória nos leva para passear pelos tempos que lá se foram...

            Tivemos em nossa casa, no Rio, uma empregada que era de Caxambu. Chamava-se Maria Hipólito. Ela trabalhou na casa do meu pai na primeira vez que ele esteve na estância, estudando  os efeitos do poder de curas pelas águas minerais. Tempos depois, ela se tornou a empregada oficial da nossa casa, sempre que  meu pai voltava  a residir na cidade.

            O tempo passou, ela casou e teve a  Gabriela (Biela) e o Geraldo que era um dos melhores cozinheiros da cidade,  muito requisitado pelos hotéis, durante o  Período da Estação.
           
            Depois que enviuvou e os filhos estavam criados, d.Maria passava meses em sua casa e os outros, no Rio em nossa casa. Minha mãe fazia Estação de Águas (como era o nome) duas vezes durante o ano; de volta ao Rio,  trazia  d.Maria junto. Ao retornar, levava de volta nossa querida amiga, agora já envelhecida, cabelos brancos, olhos azulados pela idade.
           
            Seu porte era inesquecível: alta, torso nos cabelos matizados de preto e branco,  negra, cheia de colares e miçangas, pulseiras, brincos,  roupas de tecidos coloridos, braços cruzados sobre o ventre. Parecia uma africana. Foi assim que a conheci. Ela me viu pequenina, de colo. E tinha um carinho quando me abraçava e tirava dos bolsos do uniforme balas e doces que guardava para mim.

            Lá em casa, na minha época, ela não fazia mais serviço; era a vigilante das empregadas. Pela manhã tomava seu banho de sol nos bancos do jardim, conversava com todos que passavam diante da casa.

            Em Caxambu, morava  atrás da Estação do Trem, no morro. Havia em seu quintal várias mangueiras de “manga espada”, umas delícias. Janeiro e fevereiro era a época delas. Eu ia com umas amiguinhas do Palace até sua casa chupar mangas, sentadas no chão, debaixo das árvores, até não aguentarmos mais. Era um festival de alegria!

            Certa ocasião, nas férias de verão, eu e mais uns oito garotos e garotas na faixa de nossos 13 anos, todos hóspedes do Palace, pegamos carona num carro de boi que passava diante do hotel (era comum, na época). Era à tardinha, o carro atravessou a cidade e foi em direção ao Bosque. Nós nos equilibrávamos nuns paus de amarrar carga.


 Passando o Bosque, os bois pegaram a direção de Imigração (ou Migração?), cidadezinha  entre Caxambu e São Lourenço, seguindo a antiga estrada de ferro. O caminho terminava na “Parada Ramon”, criada especialmente para os hóspedes do Hotel do Ramon, em frente ao Campo de Aviação de São Lourenço.

            Quando notamos o itinerário, saltamos do carro e voltamos para a cidade, a pé, cortando caminho pelos fundos do Parque. Naquela época, ele era aberto e tinha um Bosque cerrado que ia da porteira dos fundos  até a av.Camilo Soares, incluindo toda a área que hoje é ocupada  pelo Teleférico,  seguia até  o portão lateral, com a saída que servia ao Engarrafamento, dobrava à esquerda  em direção à  Administração e a um pequeno viveiro de flores, seguia  em direção às Fontes Mayrink, deixando a fonte Venâncio com a aparência de uma ilha  no meio de tantas árvores.   

            Não dava passagem entre os troncos, de tão juntos que eram. O chão era bem enlameado. O Lago acabou com o Bosque. Entre a Estrada do Bosque e os fundos do Parque, havia um correr de casas que beirava a Estrada e um campo de futebol grande, onde havia disputas de jogos entre Caxambuenses e  Aquáticos ou Veranistas, nomes que eram dados aos usuários das águas minerais, no verão. Interessante é lembrar que as casas da beira da Estrada do Bosque quase todas possuíam, em seus quintais, uma mina de água  mineral. As águas do Lago alagaram  as casas, as minas e o campo de futebol. 

            Cansados, voltamos ao Parque entrando pelo Bosque. Aproveitamos um tronco caído para sentarmos e descansarmos. Um dos garotos tirou do bolso um maço de cigarros e perguntou “quem quer fumar?” Todos nós aderimos. Foi um tal de tossir e cuspir porque não  sabíamos tragar.  Mas era diferente! Proibido! Transgressor! E como tal, tentador!

            Naquela época, o tratamento pelas águas durava 21 dias. Ninguém se deslocava por um tempo menor.  As estradas de rodagem eram péssimas,  o trem levava o dia inteiro para percorrer Rio-Caxambu e ia-se com a família toda, incluindo as crianças com as respectivas babás.

            Tudo isso necessitava de lavagens de roupas durante a estada nos hotéis, onde  muitos deles  pediam terno e gravata no jantar, toalete completa para as senhoras. Para tanto,  dispunham de lavadeiras e passadeiras próprias. O interessante é dizer que elas traziam as roupas lavadas  e passadas penduradas em cabides para não amarrotarem. Eles eram compridos e levados como uns estandartes, e era comum se ver verdadeiras procissões trazendo as roupas para serem entregues nos hotéis.  No momento em que descansávamos fumando, várias lavadeiras passaram por nós carregando seus estandartes, cortando caminho para a cidade.
           
          
            Quando voltamos para o Rio trazendo d. Maria conosco, ela nos contou que rompeu a amizade com sua vizinha e comadre porque ela falou de mim. Como aconteceu? “A, mia fia, a fulana contou que ia entregar roupas lavadas e passadas quando viu uma criançada fumando no Bosque, e entre elas estava “a menor do dotô Floriano”. Sim, era ela mesmo, que estava sempre me visitando em casa. Não gostei de ter falado de ocê e brigamos”. Achei graça, agradeci a defesa, abracei-a e dei um beijo na minha advogada africana.
                
            No Rio, naquele tempo, eu era semi-interna no meu colégio e permanecia  nele das 7 horas da manhã às 20:00 horas. Já vinha para casa  jantada.

            Meu pai, constantemente, tinha  amigos, clientes e colegas que jantavam lá em casa. Nós éramos vários irmãos, alguns amigos, enfim, a casa estava quase sempre cheia  na mesa de jantar. Quando eu chegava do colégio encontrava aquele povo jantando, conversando e rindo.

            Era uma época em que se podia ter várias e boas empregadas e minha mãe  ficava, apenas, fazendo as honras da dona de casa. Quando eu chegava cansada, de uniforme, sem meu  lugar à mesa, via d.Maria, toda paramentada sentada na copa, que ficava ao lado da sala de jantar. Era seu posto para ver se entre a cozinha e a sala tudo estava em harmonia. Ela me chamava, e abraçando dizia “Óia, mia fia Mariinha, guardei procê do lanche desse povo”, e tirava do bolso do avental, bolinho, doces, bombons e acrescentava “ocê tá istudando e esse povo só  na orgia”.

            Querida d.Maria Preta, como nós a tratávamos,  quanta saudade do seu colo, dos docinhos, de suas mangas. Numa das vezes em que minha mãe estava na cidade e se preparava para retornar ao Rio, a senhora estava com sua mala pronta para voltar com ela. O destino mudou o seu itinerário: um infarto fulminante levou-a para o céu. Fiquei sem minha amiga preta com olhos azuis; mas  guardo, até hoje, o carinho de suas mãos calejadas tirando do bolso docinhos e balas para “ocê, mia fia Mariinha”.   

            Minha Mãe Preta,  quando a senhora seguiu seu caminho rumo ao Infinito, não pude levar-lhe um ramo de flores mas agora, com esta crônica, transformo toda a saudade, gratidão e carinho num buquê de “Saudades e Bem-me-quer”  colocando-o junto a seu coração.

            Descanse em paz junto ao Pai Eterno,  minha Mãe Preta.


Rio de Janeiro, 29.06. 2020