domingo, 16 de agosto de 2020

PROTEGER E PROGREDIR - Crônica de Maria Lemos

 

PROTEGER E  PROGREDIR 

Por Maria Lemos


                                                                                                                           Arquivo Palace Hotel

 

 

O tombamento das águas do Parque condena a cidade a parar no tempo? A preservação do entorno abrange apenas a área próxima das fontes ou  seus limites podem ser mais amplos, ultrapassando os do Parque? O que se entende por bem tombado? A legislação brasileira dispõe de vários diplomas sobre o assunto.   

   A lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916, intitulada como Código Civil Brasileiro “Regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, os bens e às suas relações”. O capítulo III define bem público e os enumera como: os de uso comum do povo, os de uso especial; os dominicais. A classificação assentou-se no critério subjetivo da titularidade e ao adotá-lo teve em vista a simplicidade doutrinária e a necessidade de um sistema prático de disciplina, o que foi seguido pelas Constituições Federais subseqüentes.

  O decreto-lei no 25, de 30.11.37,  “Organiza a Proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. O ato de tombar um bem, para sua proteção, é uma restrição parcial do direito de propriedade realizada pelo Estado com o fim de conservar bens móveis e imóveis de interesse histórico, etnográfico, artístico, arqueológico ou bibliográfico.

  O tombamento pode ser entendido, simultaneamente, como fato ou como ato administrativo. Como fato, é uma operação material de registro de um bem efetivado pelo agente público responsável pelo Livro do Tombo. Como ato, é uma restrição imposta pelo Estado ao próprio direito de propriedade, tendo em vista conservá-la por causa do seu valor arqueológico, etnográfico, paisagístico, histórico, artístico ou bibliográfico, como um bem representativo da memória ou da criatividad

A lei no 4.771, de 15.9.1965, “Institui o Código Florestal Brasileiro”. Ela teve modificações introduzidas pelas leis nos 5.551, de 7.7.86 e 7.803, de 15.9.89.  O referido Código, em seu art. 3o , considera a preservação permanente, quando assim declarado por ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico.

 A lei no 6.513, de 20.10.77, e sua regulamentação pelo decreto no 86.176, de 06.6.81, “Dispõe sobre Área Especial e Locais de Interesse Turístico”. No artigo 2o abordando os Locais de Interesse Turístico, são citadas “...as fontes hidrominerais aproveitáveis...”   

 Um bem para ser tombado deve encerrar um significado que mereça ser preservado por causa do seu valor quer histórico, artístico, paisagístico, etc. Esse significado é reconhecido pela cultura. Um país, um Estado, uma Administração que tenham cultura protegerão os acervos tombados. Só os espíritos cultos reconhecem e  dão valor aos tombamentos.    

Caxambu, como a maioria das cidades brasileiras, passa por momentos difíceis quando é preciso promover o progresso da urbes sem afetar o meio ambiente. A preservação de uma cidade não implica  em renegá-la a um estacionamento no tempo com   o progresso e a cultura fechando os olhos para a modernidade.

 Preservar um bem atípico, como são as estâncias hidrominerais, é ter os olhos atentos nos fatos passados para traçar  no presente o futuro que se deseja deixar para os seus. É correta a frase que diz que o passado é a chave do presente, assim como o presente será a chave do futuro.      

 O solo dessas  cidades  encerra  o resultado de uma série de fatores onde, há muitas centenas de anos, a geografia, geologia, meio ambiente, clima, etc. interagem  na mineralização das águas. Esses fatores são importantes e imprescindíveis na conservação e manutenção das fontes de um parque e deverão, portanto, merecer tratamento prioritário das administrações municipais.

Um predicado importante no estudo das águas minerais é a termalidade. Os romanos davam muita importância à água termal e, durante seis séculos, construíram  “Termas” para seus  banhos medicinais e relaxantes.

São nos terrenos vulcânicos, quer antigos (no caso de Caxambu) ou novos, que se encontram a maioria das fontes termais. Durante centenas de anos as águas se infiltram no interior do globo, tornam-se quentes e passam a vapor, segundo a profundidade em que estão. O grau do calor vai depender da natureza e da profundidade das terras. O vapor aquoso, por pressão, é mandado de baixo para cima e passa para o estado líquido ao atravessar camadas terrestres superiores mais frias.  

    Essas águas se mineralizam durante o trajeto dissolvendo princípios solúveis formados ou que se formam com sua intervenção, e acabam brotando onde o solo permite. Elas são como tipos de sondas que nos trazem do centro da terra amostras dos princípios de sua composição. A mineralização é realizada por via de dissolução, direta ou indireta, pela ação dissolvente da água, ou por agentes como o calor e a pressão.

    Como as águas circulam sem parar pelas diversas camadas do globo, elas comprovam  continuamente as modificações em suas naturezas; seus trajetos, mais ou menos longos, percorrendo pelo subsolo antes de emergir na superfície, o abaixamento das temperaturas à medida que se aproximam da atmosfera, a diminuição da pressão e a presença de princípios minerais, poderão modificar profundamente a constituição de suas águas. Tudo isso explica a grande diversidade que se constata na natureza das águas minerais, mesmo aquelas que pertencem a um mesmo grupo (como águas ferruginosas, bicarbonatadas, etc.).

   Quanto mais profundamente se originam as águas no seio da terra, tanto mais alta será a temperatura que se elevará a 1o para cada 33 metros de profundidade. Assim, se tomarmos como exemplo o gêiser, Fonte Floriano de Lemos, com água a 27o  de temperatura, calculamos sua origem a 891m de profundidade, que não estará, obrigatoriamente, na vertical, podendo encontrar-se  numa extensão de dezenas e centenas de metros adiante dos limites atuais do Parque das Águas. Só o estudo do solo poderá precisar o local da origem da fonte. 

   Esse exemplo serve para mostrar como a preservação do entorno é importante para as fontes de águas minerais. Qualquer construção que se vá erguer no perímetro urbano, e mesmo fora dele nos arredores da cidade, deverá ser precedida por um estudo do solo. Se houver um corte profundo, um rebaixamento do lençol freático, uma mutilação na mata, uma compactação violenta no solo, um derramamento de substância nocivas à saúde (produtos químicos de fábricas, etc.) que entrarão no trajeto das águas em seus percursos pelo subsolo, serão interferências que deverão ser evitadas ou monitoradas, no caso de terrenos como os de Caxambu.

   O meio ambiente é uma interação onde agem o clima, o regime de chuvas, a flora, a fauna, todos atuando junto com o solo, onde as rochas recebem a água que se infiltra até encontrar resistência. Em seu trajeto, tanto de ida como de volta, ela vai sofrendo e provocando reações químicas, pressão, etc. e quando emerge é o resultado vindo do imenso laboratório e cozinha que é o centro da terra.

 Cada fonte mineral é o resultado de um percurso feito; tantas fontes diferentes, como são as do Parque de Caxambu, espelham os diversos caminhos por que passam. Sendo o Parque uma área pequena com 13 fontes distintas  de sabor, mineralização e aplicações terapêuticas, suas  águas demonstram que percorrem camadas geológicas diferentes, devendo para tal terem feito o trajeto a dezenas de quilômetros de distância de onde emergem.   

 

            O progresso deve andar junto com a preservação e o grande auxiliar é a cultura. É ela  que ajuda nos projetos para uma preservação progressista. Uma cidade pode conviver com o moderno e o antigo na medida em que cada um obedeça seu espaço, seu limite. É o que se vê em cidades centenárias e modernas, como a maioria das europeias e asiáticas. Elas se modernizam, se adaptam ao novo, mas guardam suas características originais: há um orgulho em cultivar e preservar o passado.

 Na inteiração com o meio ambiente é importante ressaltar que o visual, a arquitetura, a urbanização das ruas e dos prédios não devem destoar dos demais quesitos citados acima. Não é difícil constatar que, em regiões com fontes de água mineral,  prédios baixos com 1, 2 e 3 andares terão fundações e estruturas compatíveis com a vulnerabilidade do terreno e dos cuidados com o solo. Bem diferente é o que acontece com prédios altíssimos, como os que foram erguidos em Caxambu. Tudo é uma questão cultural onde o conhecimento abre a visão daqueles que se interessam por sua cidade, colocando de lado o interesse e a especulação imobiliária. 

     O progresso nas estâncias hidrominerais, geralmente situadas em regiões montanhosas e com  clima privilegiado, não deve ser direcionado para copiar os grandes centros urbanos. Ao querer viver uma vida citadina, abandona-se o que essas regiões têm de maravilhosas (qualidade de vida, clima, água, etc) e se vive uma vida sem definição (nem cidade nem campo).        

           

Qualquer tombamento, seja ele de prédio, jardim, parque, praça, etc., se tiver respeitado os itens que direcionaram sua preservação, não terá que estacionar no tempo e no espaço. O progresso também é um bem que deve ser cultuado. A cultura é a maestrina que deverá ditar os trâmites dessa simbiose  “proteção com desenvolvimento”.

 

Rio, 01.11.2005

Publicada no Jornal “Destaque”, de novembro de 2005.



Colaboração: Pepe