DOCE  LEMBRANÇA  CAXAMBUENSE
Maria de Lourdes Lemos
            Como
é bom ter tido bons momentos vividos na infância e na adolescência e poder revivê-los
 em 
nossos refúgios interiores, quando a 
memória nos leva para passear pelos tempos que lá se foram...
            Tivemos
em nossa casa, no Rio, uma empregada que era de Caxambu. Chamava-se Maria
Hipólito. Ela trabalhou na casa do meu pai na primeira vez que ele esteve na
estância, estudando  os efeitos do poder
de curas pelas águas minerais. Tempos depois, ela se tornou a empregada oficial
da nossa casa, sempre que  meu pai
voltava  a residir na cidade. 
            O
tempo passou, ela casou e teve a 
Gabriela (Biela) e o Geraldo que era um dos melhores cozinheiros da
cidade,  muito requisitado pelos hotéis,
durante o  Período da Estação. 
            Depois
que enviuvou e os filhos estavam criados, d.Maria passava meses em sua casa e os
outros, no Rio em nossa casa. Minha mãe fazia Estação de Águas (como era o nome)
duas vezes durante o ano; de volta ao Rio,  trazia  d.Maria junto. Ao retornar, levava de volta
nossa querida amiga, agora já envelhecida, cabelos brancos, olhos azulados pela
idade. 
            Seu
porte era inesquecível: alta, torso nos cabelos matizados de preto e branco,  negra, cheia de colares e miçangas, pulseiras,
brincos,  roupas de tecidos coloridos,
braços cruzados sobre o ventre. Parecia uma africana. Foi assim que a conheci.
Ela me viu pequenina, de colo. E tinha um carinho quando me abraçava e tirava
dos bolsos do uniforme balas e doces que guardava para mim. 
            Lá
em casa, na minha época, ela não fazia mais serviço; era a vigilante das empregadas.
Pela manhã tomava seu banho de sol nos bancos do jardim, conversava com todos
que passavam diante da casa. 
            Em
Caxambu, morava  atrás da Estação do
Trem, no morro. Havia em seu quintal várias mangueiras de “manga espada”, umas
delícias. Janeiro e fevereiro era a época delas. Eu ia com umas amiguinhas do
Palace até sua casa chupar mangas, sentadas no chão, debaixo das árvores, até
não aguentarmos mais. Era um festival de alegria!
            Certa
ocasião, nas férias de verão, eu e mais uns oito garotos e garotas na faixa de
nossos 13 anos, todos hóspedes do Palace, pegamos carona num carro de boi que
passava diante do hotel (era comum, na época). Era à tardinha, o carro
atravessou a cidade e foi em direção ao Bosque. Nós nos equilibrávamos nuns paus
de amarrar carga. 
 Passando
o Bosque, os bois pegaram a direção de Imigração (ou Migração?),
cidadezinha  entre Caxambu e São
Lourenço, seguindo a antiga estrada de ferro. O caminho terminava na “Parada
Ramon”, criada especialmente para os hóspedes do Hotel do Ramon, em frente ao
Campo de Aviação de São Lourenço.
            Quando
notamos o itinerário, saltamos do carro e voltamos para a cidade, a pé, cortando
caminho pelos fundos do Parque. Naquela época, ele era aberto e tinha um Bosque
cerrado que ia da porteira dos fundos  até a av.Camilo Soares, incluindo toda a área
que hoje é ocupada  pelo Teleférico,  seguia até  o portão lateral, com a saída que servia ao
Engarrafamento, dobrava à esquerda  em
direção à  Administração e a um pequeno
viveiro de flores, seguia  em direção às
Fontes Mayrink, deixando a fonte Venâncio com a aparência de uma ilha  no meio de tantas árvores.   
            Não
dava passagem entre os troncos, de tão juntos que eram. O chão era bem
enlameado. O Lago acabou com o Bosque. Entre a Estrada do Bosque e os fundos do
Parque, havia um correr de casas que beirava a Estrada e um campo de futebol
grande, onde havia disputas de jogos entre Caxambuenses e  Aquáticos ou Veranistas, nomes que eram dados
aos usuários das águas minerais, no verão. Interessante é lembrar que as casas
da beira da Estrada do Bosque quase todas possuíam, em seus quintais, uma mina
de água  mineral. As águas do Lago alagaram
 as casas, as minas e o campo de futebol.  
            Cansados,
voltamos ao Parque entrando pelo Bosque. Aproveitamos um tronco caído para sentarmos
e descansarmos. Um dos garotos tirou do bolso um maço de cigarros e perguntou
“quem quer fumar?” Todos nós aderimos. Foi um tal de tossir e cuspir porque
não  sabíamos tragar.  Mas era diferente! Proibido! Transgressor! E
como tal, tentador!
            Naquela
época, o tratamento pelas águas durava 21 dias. Ninguém se deslocava por um
tempo menor.  As estradas de rodagem eram
péssimas,  o trem levava o dia inteiro
para percorrer Rio-Caxambu e ia-se com a família toda, incluindo as crianças com
as respectivas babás. 
            Tudo
isso necessitava de lavagens de roupas durante a estada nos hotéis, onde  muitos deles  pediam terno e gravata no jantar, toalete
completa para as senhoras. Para tanto, 
dispunham de lavadeiras e passadeiras próprias. O interessante é dizer
que elas traziam as roupas lavadas  e
passadas penduradas em cabides para não amarrotarem. Eles eram compridos e
levados como uns estandartes, e era comum se ver verdadeiras procissões trazendo
as roupas para serem entregues nos hotéis.  No momento em que descansávamos fumando,
várias lavadeiras passaram por nós carregando seus estandartes, cortando
caminho para a cidade.
            Quando
voltamos para o Rio trazendo d. Maria conosco, ela nos contou que rompeu a
amizade com sua vizinha e comadre porque ela falou de mim. Como aconteceu? “A,
mia fia, a fulana contou que ia entregar roupas lavadas e passadas quando viu
uma criançada fumando no Bosque, e entre elas estava “a menor do dotô
Floriano”. Sim, era ela mesmo, que estava sempre me visitando em casa. Não  gostei de ter
falado de ocê e brigamos”. Achei graça, agradeci a defesa, abracei-a e dei um
beijo na minha advogada africana. 
            No
Rio, naquele tempo, eu era semi-interna no meu colégio e permanecia  nele das 7 horas da manhã às 20:00 horas. Já
vinha para casa  jantada. 
            Meu
pai, constantemente, tinha  amigos,
clientes e colegas que jantavam lá em casa. Nós  éramos vários irmãos, alguns amigos,
enfim, a casa estava quase sempre cheia 
na mesa de jantar. Quando eu chegava do colégio encontrava aquele povo jantando,
conversando e rindo. 
            Era
uma época em que se podia ter várias e boas empregadas e minha mãe  ficava, apenas, fazendo as honras da dona de
casa. Quando eu chegava cansada, de uniforme, sem meu  lugar à mesa, via d.Maria, toda paramentada
sentada na copa, que ficava ao lado da sala de jantar. Era seu posto para ver
se entre a cozinha e a sala tudo estava em harmonia. Ela  me
chamava, e abraçando dizia “Óia, mia fia Mariinha, guardei procê do lanche
desse povo”, e tirava do bolso do avental, bolinho, doces, bombons e
acrescentava “ocê tá istudando e esse povo só 
na orgia”.
            Querida
d.Maria Preta, como nós a tratávamos,  quanta saudade do seu colo, dos docinhos, de
suas mangas. Numa das vezes em que minha mãe estava na cidade e se preparava
para retornar ao Rio, a senhora estava com sua mala pronta para voltar com ela.
O destino mudou o seu itinerário: um infarto fulminante levou-a para o céu.
Fiquei sem minha amiga preta com olhos azuis; mas  guardo, até hoje, o carinho de suas mãos
calejadas tirando do bolso docinhos e balas para “ocê, mia fia Mariinha”.   
            Minha
Mãe Preta,  quando a senhora seguiu seu
caminho rumo ao Infinito, não pude levar-lhe um ramo de flores mas agora, com
esta crônica, transformo toda a saudade, gratidão e carinho num buquê de “Saudades
e Bem-me-quer”  colocando-o junto a seu
coração.  
            Descanse
em paz junto ao Pai Eterno,  minha Mãe
Preta.
Rio de Janeiro, 29.06. 2020