FOI UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA
Por José Celestino Teixeira
Naquela manhã úmida de 1958, quando acordei não poderia imaginar que minha vida iria se transformar tanto assim.
Era uma segunda-feira dessas, em que a gente já acorda entediado com tudo.
Quando levantei era cedo demais.
A umidade do tempo era cruel.
O dia, Não havia clareado, ainda.
Era madrugada.
Mas, ontem ficou a promessa de que eu iria visitar a fábrica de doces.
Afinal, qual garoto aos sete anos, naqueles idos, não gostaria de viajar numa Caminhoneta (Pic-up) Chevrolet Modelo 3.100, Ano 1953.
Era linda a caminhoneta Chevrolet do meu tio Waltinho.
Amarelinha, com espelho de alça nas laterais.
Lembro-me que o câmbio era no volante e, não no chão.
Os bancos de couro e muito confortáveis.
Cabiam 04 passageiros na boléia juntos ao motorista.
Os pneus tinham bandas brancas.
Sobre o vidro da frente que se dividia em dois havia uma aba tipo bonezinho feito de uma resina azulada, que protegia motorista e passageiros contra o sol.
Nosso sonho: Meu e do meu primo era andarmos um dia na carroceria, onde havia no chão uma caixa de ferramentas de madeira e na lateral um pneu sobressalente.
Mal tomei o café com leite e broa de fubá debaixo das mil recomendações de mamãe e já ouvia o som da buzina na rua.
Embora cedo, meu tio não gostava de perder tempo.
E, se demorasse ficava pra outra vez e ele ia embora.
Saltei da mesa.
Vesti a japona com gola de pele de coelho e logo já estava a bordo da caminhoneta.
Mais adiante notei que havia esquecido a mochila com o lanche.
Tio Walter resmungou e eu entendi que não seria mais possível voltar.
Pelo vidro traseiro, ainda, vi mamãe acenando na porta de casa com a mochila nas mãos.
Em vão!
Nós não iríamos voltar. Quero dizer; eu não podia voltar a trás.
Dali em diante só se andava para frente.
Alias, acho até que depois daquela viagem, eu nunca mais iria voltar a ser criança.
Senti despedir da Infância.
Mas, logo esqueci de tudo que ficou para trás.
Tomamos sentido do Rio Grande beirando uma linha de trem.
Já ia me esquecendo de dizer que estávamos nas Vertentes de Minas.
Mais precisamente na histórica São João Del Rei, que alias durante muito tempo, ainda era tratada por : “St. John Dey Rey”.
Em Minas os Ingleses exploravam, ainda, nos anos 50, uma Mina de Ouro.
Era a Morro Velho, nas proximidades de BH, da Companhia St. John Del Rey Mining, onde sua Alteza, a Rainha ainda reinava absoluta.
Mas, isto eu saberia muito mais tarde, quando no Ginásio Santo Antônio dos Frades Franciscanos tomaria as primeiras lições de história, como o Professor Domingos Horta.
O popular Professor Domingão.
Com quem confesso aprendi tudo sobre Reis, Rainhas e Maracatus.
Naquela segunda-feira eu estava indo era para Conceição da Barra, um antigo distrito de SJDR, onde além da Cassiterita diziam havia exploração clandestina de areias radioativas. Mas pra mim, lá se fabricava a melhor goiabada cascão de toda a nossa Região.
A estrada de terra era sinuosa e estava embarrada.
Meu tio um “Az” no volante.
Fazia com que a caminhoneta deslizasse e de vez em quando rodasse na estrada dando as laterais, mas, sem nunca tocar nos barranco laterais.
Era um verdadeiro ballet na chuva.
Lembrei-me, que alguns dias antes havia visto uma tabuleta do Cine Teatro Municipal, que ficava na Ponte da Cadeia, com o anuncio do musical CANTANDO NA CHUVA ( Sing in The Rain) estrelado em 1956, por Geny Kelly.
Logo pensei comigo: Aqui é Dançando na Chuva.
Minha alegria triplicou quando surgiu de súbito na lateral da estrada, onde corria uma linha de ferro serpenteando o riacho, um Trem.
Trem de Ferro.
Vinha aquela Coisa fumegante apitando feita louca.
E parecia que ia invadir a estrada de terra em que nós estávamos.
Soltava fogo pelas ventas e o susto foi grande.
Dizem que para nós Mineiros, tudo é Trem.
Menos, o Trem de verdade.
Muitas das vezes, nós tratamos o Trem de Verdade, como:“Coisa”.
Na Estação os mineiros dizem: “Junta o trem, que lá vem a Coisa”!
Coisa Preta!
Passado o susto e o Trem vinha um rio grande, que logo fiquei sabendo ser tratar do Rio Grande mesmo. Aquele tal Rio Grande, que nascido lá na Serra da Bocaina de Minas, no Sul dos Gerais vai descer até a Bacia Prata, depois de engolir o das Mortes, o Rio Jacaré, o Aiuruoca, o Verde e acho até que a Sapucaí e o Sapucaí - Mirim, também. Por sua vez o Verde engole o Baependi, o do Peixe, o de São Bento, o Palmela, o Rio Espera e o Capivari. O Verde se alimenta do Gamarra e do São Pedro, do Ribeirão do Taboão e do nosso pequeno, mas gracioso Ribeirão Bengo.
Aquele mesmo, mineralizado por nossas Águas Santas.
Tudo vai direitinho até Itutinga e na Represa de Camargos, quando não, para a de Furnas.
As represas engolem todos os ribeirões, riachos, córregos, bengos e rios para movimentar turbinas e gerar energia.
Naquele tempo é verdade, que aos Sete Anos de idade, eu nada sabia disso tudo.
Mas já ia aprendendo muito vendo a natureza viva e, não morta.
Aprendendo pra depois tentar ensinar.
Ensinar para aprender muito mais ainda, com quem ainda não sabe, mas, pergunta.
Quer saber.
Aprender!
A não ser quando eu lá sonhava sonhos de menino.
Com promessa de pagar pecado com reza recebida em penitência de confessionário.
Naquele tempo, não sabia por que menino tinha tanto pecado.
Duvidava!
Mas, como já não era bobo eu sempre fugia das Sacristias.
Afinal preferia ver o Padre de batina e paramentos a celebrar missa diante do altar do que tê-lo intimo a propor cortesias.
Como sempre faziam alguns deles, com os meninos menores que cantavam no coro.
Muitos fugiam, outros caiam no conto da carochinha.
Coitados. Pobres coitados!
Meninos bons que não deveriam ter pecado tanto assim.
Provavelmente se não tivessem caído na Historia do Lobo Mau seriam mais felizes.
Mas, graças ao bom Deus eu era livre desses pecados.
Os meus eram de fazer bobagem e brincar de médico, só com meninas.
Até confesso que para ganhar cartuchos de amêndoas (de coco e amendoim) na Semana Santa, já vesti opa, carreguei a tocha, toquei matraca pra cera do Santo Sepulcro e balancei o Turíbio com incenso e mirra. Mas, coroinha oficial, não cheguei a ser.
O Padre, não deixou.
Eu não era confiável.
Logo percebi daquelas intenções.
Se bem que eu tinha vontade, muita vontade de tocar aquela campainha que se toca na hora da consagração de cristo.
Aquela de vários sininhos.
Como eu gostava daquela campainha.
Acho que gosto até hoje dela.
Voltando a Conceição da Barra vi na beira do rio a mineração de cassiterita que mais tarde se transformaria em estanho.
Era uma riqueza espionada pelo olho do próprio dono da Mineração.
Tudo era medido e muito bem pesado.
Deixamos a beira do rio e cortamos por um atalho.
Na estrada principal havia uma ribanceira com uma estradinha estreita morro abaixo.
No fundo daquele Vale havia uma casinha branca com chaminé fumegante.
Era linda aquela paisagem que se descortinava aos meus olhos.
Fui avisado de que a caminhoneta não desceria, pois, se carregada jamais subiria novamente a ribanceira.
Lá embaixo já avistei um carro de bois (12 juntas de bois caracu).
Carregavam o carro com caixas de madeira.
Descemos o morro escorregando e caindo como fruta madura caí do pé.
Não havia como não cair.
Na casinha branca entramos e dei de frente com um tacho de cobre enorme cheio de doce de goiabas.
Tudo fumegando debaixo de uma imensa fornalha alimentada por lenha, gravetos e troncos de árvores poderes.
Um negro que não tinha uma das munhecas, apoiava o antebraço numa pá de madeira toda furadinha.
Ia mexendo a calda que a medida em que fervia engrossava.
Sorriu e disse cuidado com a beira do tacho.
Voltou a mexer o doce e falou: logo vem o “Ponto”.
Cuidado!
O tacho vai virar.
Deu ordens ao outro menino que parecia ser seu filho que retirasse a lenha que alimentava o fogo, com um tridente de ferro e pá.
Afastei e pude assistir ao doce que corria como uma lava incandescente para um dispositivo de madeira, onde em baixo encaixavam-se umas caixinhas, também de madeira.
Pensei comigo: Será que o Inferno é Vermelho e quente como é o doce de Goiaba?
Não acreditei.
Mas, se fosse, pelo menos seria doce.
Era tudo muito rápido.
Logo havia centenas de caixetas todas prontas para serem tampadas por outro menino albino, que pelo jeito, também era filho daquele que mexia o doce.
O doceiro era o “Clemente”.
Encheram o carro de bois de caixas grandes que levavam umas 50 caixinhas de goiabada daquelas.
Os bois firmes suportavam com coragem todo o peso.
Apenas, de vez em quando balançavam.
O Clemente agora assumiu o posto de carreiro.
Autoritário com o a Vara do marimbondo nas pontas, os bois sabiam a quem obedecer. Chamou cada um deles pelo nome: Malhado, Zumbi, Zebu, Carrapato, Carneiro, Cipó, Vaga-lume, Vaqueiro, Vadio.
E tal e, tal.
Puxou os da Guia, conferiu os do Coice que eram os freios e foi virando o carro como num bailado pesado e dengoso.
Gentilmente convidou-nos: eu e meu primo para subirmos no Carro dos Bois.
Passou a frente e depois foi pro meio na lateral quase no meio da boiada.
O menino aço assumiu a frente.
Era o guia.
Os 06 pares deram inicio à marcha na lerdeza do carro.
Quando deu de andar a guia dos bois, o cocão rangedor do carro gemeu um gemido doce e manhoso.
No princípio foi um som ensurdecedor. Depois, com o andar da boiada na marcha, o som suavizou se transformou em verdadeira cantiga.
Cantiga de bois.
O carro cantava e os pássaros respondiam na matinha ao lado.
Quando chegou lá em cima, na estrada principal eu desci do carro de bois.
Confesso, com vontade de nunca ter descido dele.
Entrei na caminhoneta e vinha comendo um naco de goiabada cascão com um pedaço de queijo curado.
O Clemente, ainda na casinha raspou o tacho e me deu um bom pedaço de raspa da goiabada. Derrubou leite numa cuité e falou: “bebe aqui numa cuité e leva o resto com um queijo”.
Ao dobrar a curva, quando a estrada encontrou de novo com o Rio Grande e os trilhos do Trem, eu adormeci.
Só acordei hoje, quando ainda percebo que tudo foi UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA.
Triste, confesso quase chorei, ao Saber:
No final do Dia, eu percebi já não ser mais o menino que havia acordado naquela manhã, daquele Chuvoso Dezembro de 1958.
Hoje, humildemente confesso:
“Nunca Aprendi Dizer Adeus Aquele Rio Grande”.