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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Artigo de opinião: PROFISSÃO DE FÉ


PROFISSÃO DE FÉ
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A DIFÍCIL ARTE DE ENSINAR





Emocionei-me ao ler um email de uma amiga, Dra. Jussara Vono Toniolo, importante diretora na história de uma Universidade que leciono, parabenizando-me pelo número de alunos que estão optando por especializar-se em psiquiatria, atribuindo-me, em parte, a responsabilidade por estas escolhas: “graças ao seu trabalho!”. Então, resolvi pensar nesta relação, profundamente transformadora, entre o professor e o aluno.


Não como numa igreja. Não como num bar. Não como num cemitério. Estes lugares sempre têm as portas abertas. Quando começo minhas aulas, peço que fechem a porta, esperando que ali dentro aconteça um encontro muito íntimo. Como num quarto. Como numa sala de parto. Como num consultório. Espero na prerrogativa de que quando uma porta se fecha outras se abram. Lá fora, objetividades, aqui dentro, subjetividades. O respeito ao setting é fundamental para a aceitação de limites: o saber somente pode ser compartilhado se antes for reconhecido em sua existência. É notório o constrangimento das pessoas quando abrem a porta durante uma aula e reparam no seu erro, reconhecendo que interromperam alguma coisa muito importante que estava acontecendo ali dentro.


Ali dentro, a sexualidade é exercida em sua mais primitiva forma de manifestação, a oralidade: por mais idade, espera o peito quem quer aprender. E então se dá a mágica nada cartesiana do professor que precisa dividir seu único peito entre as famintas bocas a serem alimentadas. O milagre da multiplicação dos peitos. E, como nos bebês, cada aluno também tem sua forma própria de lidar com o peito. Alguns precisam ser acordados pra mamar, enquanto outros precisam ser contidos em sua voracidade. Há aqueles que se sentem satisfeitos com o que recebem, mas também existem os que sempre acham que o outro recebeu mais. O importante é que seja possível o encontro.


O encontro que se dá é sempre uma réplica de uma matriz que ficou no passado. Na ordem natural da vida, adiamos ao máximo a separação de nossos pais. Não são difíceis de vermos, em nós e nos outros, os atributos próprios da dependência de seres idealizados que carregamos, às vezes, por toda a vida: a ilusão construída, a espera calada e a crença cega. Assim, mesmo que fisicamente estejamos aptos, emocionalmente temos a tendência a transferir a outras pessoas as propriedades próprias das autoridades de quem dependemos um dia. Essa transferência de funções espera encontrar no outro a mesma atenção e cuidados que um dia eu imagino ter recebido. E quem primeiro se apresenta a esse papel é o professor.


O professor é o quadro negro. No qual inscrevemos os papéis com os quais vamos nos relacionar. Feito à imagem e semelhança. Mas, ao mesmo tempo em que é também não é. E, à medida que vai construindo o que não é, permite ao aluno ser. O pensamento, atributo simbólico que nos caracteriza como humanos, nasce na frustração da percepção da incompletude de que somos feitos. Você vai esperando encontrar um pai e encontra um professor. Você vai esperando encontrar um professor e encontra um pai. E é destes desencontros que terminamos por encontrar a nós mesmos. Fecha-se o ciclo quando aprendemos a aprender. Então, estamos preparados para receber as lições da vida.


As lições da vida não se aprendem nas salas de aula. Por exemplo, posso aprender na escola a prescrever o medicamento, mas somente se o paciente sentir confiança em mim é que vai tomar o remédio como orientei. Então, de pouco adianta saber sobre medicamentos, pois para usá-los o paciente quer antes se sentir ouvido e compreendido. O médico é o primeiro e principal remédio. Assim também é a relação entre o professor e o aluno. Antes de ensinar o b-a-bá, o professor precisa se dar como uma babá. Algo assim entre a mãe e o mundo.  A babá é assim: nem tão íntima como a mãe, mas também não tão estranha como o mundo. E tem a autoridade delegada por nossos pais.


Nossos pais se reencontram no encontro que temos com nossos professores: este é o modelo que tornará possível qualquer processo educacional. Este vínculo vai ser mais ou menos transformador conforme vivenciamos nossas relações primordiais. E olhem, geralmente, nada disto é consciente. Mas, é assim que se dá. E muitas vicissitudes se traduzem em dificuldades de aprendizagem, em comportamentos arredios, e até em violência contra o professor e a escola. A maturidade emocional do professor é fundamental para que ele tenha consciência desta sua importância e conduza a elaboração de nossa separação destes mesmos pais. Digo isto porque é somente na separação que há o nascimento do ser e a construção da identidade. É na separação que acontece o aprender. De qualquer coisa.Repare bem.


Repare bem nas diversas histórias que nos são contadas sobre como se dera a entrada na escola, de forma mais ou menos fácil, das muitas crianças que conhecemos. Quantas mães precisaram ficar ao lado de seus filhos para que eles aceitassem estar nos bancos de uma sala de aulas? Estudar é perigoso! E as crianças sabem disso. No fim das contas aprendo que dois corpos não podem nunca mais ocupar o mesmo espaço, e que ninguém pode fazer a prova final por mim. Mas aprendo também que pólos diferentes se atraem, que toda prosa tem poesia, que pode rolar uma química entre nós e que, na matemática da vida, um mais um pode terminar em três. Pai. Mãe. Filho. E o ciclo da vida novamente se repete, indefinidamente.


Indefinida Mente. Imaginem ter que atestar a existência da mente num meio acadêmico que é cada vez mais baseado em evidências? Esse é o desafio! Lembro-me como fui desestimulado a especializar-me em psiquiatria – coisa de louco! – ao final do meu curso médico, e hoje, apesar de todo distanciamento afetivo promovido pela virtualidade dos vínculos, do caráter narcísico que caracteriza as relações, e da banalização da violência, consigo mostrar que as evidências da existência da mente não estão no exame de sangue ou no raio X, mas na vida que se leva. A vida não se restringe ao corpo! Ainda assim, um mal-estar permeia todo discurso que apregoa a mente. Estou com Freud, para quem, ensinar, governar e exercer a psicanálise, são profissões impossíveis. Profissões de fé! Não impraticáveis, mas impossíveis, porque dependem do encontro e seu escuro, como os quadros negros em que eu aprendi.



Eu aprendi e agora posso ensinar. Quando estou dando aula, não me lembro de meus professores, mas sei que eles estão em mim. Neles escrevi minha história. Com eles, ela também está se apagando. Textos. Teoremas. Teses. Fórmulas que nunca consegui entender. As provas mais difíceis estou fazendo agora. Antes eu somente tinha que pensar em crases, hoje são as crises que me atormentam. As minhas e as dos outros. Antes esperava respostas, hoje vivo de perguntas. As minhas e as dos outros. Procuro equações pra explicar a dor, mas descobri que elas não existem. Descobri também que todo amor é escrito com giz, que por um pequeno descuido pode se apagar. Mas, apesar de tudo, aprendi com eles que, toda vida, deveria merecer ao seu final, um ponto de exclamação!


"CARPE DIEM" - "Sociedade dos Poetas Mortos", filme de Peter Weir

"SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS" - Cena Final, filme de Peter Weir

Por Maurício Gadbem