6 decigramas de álcool já significam crime? Ou não ?
Luiz Flávio Gomes
Elaborado em 12/2012.
Caso
o condutor do veículo se submeta ao exame pericial e se constate 6
decigramas de álcool por litro de sangue (ou 0,3 miligramas de álcool
por litro de ar alveolar), isso, por si só, já configura o crime do art.
306 do Código de Trânsito?
Já
são incontáveis as polêmicas geradas pela nova lei seca. Uma delas diz
respeito ao seguinte: caso o condutor do veículo se submeta ao exame
pericial (exame de sangue ou etilômetro) – cabe recordar que isso não é
impositivo porque ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo – e
se constate 6 decigramas (ou 0,6g) de álcool por litro de sangue (ou 0,3
miligramas de álcool por litro de ar alveolar), isso, por si só, já
configura o crime do art. 306 do Código de Trânsito? O que diz a lei?
“Art. 306. Conduzir
veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da
influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine
dependência:
Penas
– detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou
proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo
automotor.
§ 1. As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I
– concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de
sangue ou igual ou superior a 0,3 miligramas de álcool por litro de ar
alveolar; ou
II – sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo CONTRAN, alteração da capacidade psicomotora.”
Cabe
remarcar o seguinte: ninguém é obrigado a fazer essa prova pericial, ou
seja, o condutor do veículo não é obrigado a ceder o seu corpo para
fazer exame contra si mesmo. Foi isso o que decidiu o STJ em março de
2012 (daí a nova reforma do Código de Trânsito), observando a
Constituição Federal, a Convenção Americana de Direitos Humanos, a
jurisprudência do STF assim como o princípio nemo tenetur se detegere.
Caso
o condutor queira se submeter ao exame de sangue ou ao etilômetro
(bafômetro) e fique constatada a taxa etílica estipulada na lei (acima
referida), já estamos (ou não) diante do crime do art. 306?
Os
agentes da repressão (policiais militares, policiais civis e Ministério
Público), tendencialmente, de um modo geral (há exceções, claro),
afirmarão que a taxa etílica referida é o suficiente para a configuração
do crime, que seria de perigo abstrato. Essa é a doutrina, por exemplo,
de Francisco Sannini Neto e Eduardo Luiz Santos Cabette, delegados de polícia, que afirmaram:
“Na
verdade, no inciso I, do §1°, do artigo 306, há uma presunção por parte
do legislador no sentido de que o motorista flagrado na condução de
veículo automotor com a concentração igual ou superior a 6 decigramas de
álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligramas de
álcool por litro de ar alveolar, esteja com a sua capacidade psicomotora
reduzida. Trata-se, nesse caso, de uma regra clara. Constatados os
mencionados índices, há uma presunção legal de embriaguez e o infrator
poderá ser preso em flagrante. Neste aspecto pode-se afirmar que se a
ebriedade é constada por meio do exame de etilômetro ou exame
toxicológico de sangue nos patamares legalmente estabelecidos, se está
diante de um crime de perigo abstrato.”
Continuam os renomados autores:
“Sob
o aspecto administrativo, se for constatada a concentração de álcool em
níveis inferiores ao mencionado no inciso I, não haverá presunção de
embriaguez geradora de punição na seara penal. Contudo, nos termos do
artigo 276 do CTB, com a redação disposta pela nova Lei, qualquer
concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar
sujeita o motorista às penalidades previstas no artigo 165.”
O
que acaba de ser dito era o que vigorava antes da reforma trazida pela
lei 12.760/12. Antes era assim, por força do critério legal quantitativo.
Havia mesmo uma presunção legal de estar dirigindo sob a influência do
álcool quando constatada a taxa de 6 decigramas. A lei mudou, o critério
agora é outro. Logo, o entendimento que predominava antes não pode
agora prosperar. Mudou a lei, outra agora deve ser a interpretação.
A leitura do novo art. 306 (“Conduzir
veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da
influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine
dependência”) nos leva, de plano, a inferir o seguinte: compete ao órgão acusatório comprovar oito requisitos:
1º)
que o agente conduzia um veículo automotor (o ato de conduzir exige
deslocamento do veículo; não basta estar sentado no banco do motorista,
com as mãos no volante);
2º)
que se trata de um veículo automotor (o Código de Trânsito traz o
conceito de veículo automotor, que é o se locomove por si mesmo;
bicicleta, por exemplo, não é veículo automotor);
3º)
local da condução do veículo (via pública ou via privada: de se notar
que a nova lei já não especifica o local da condução, podendo ser
qualquer um dos mencionados; isso é muito relevante para a aferição da
afetação ao bem jurídico protegido, logo, para a existência ou não de
crime);
4º) que houve ingestão de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência (drogas ilícitas, remédios etc.);
5º)
sempre que possível, o grau da intoxicação etílica ou decorrente de
outra substância (a quantificação da intoxicação, o tempo transcorrido
desde a ingestão da substância etc.);
6º)
a forma da condução do veículo automotor, visto que não basta a
ingestão de uma substância, sendo necessário, pela lei, que haja
condução sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa
que determine dependência:
7º)
a capacidade psicomotora do condutor (em razão da influência da
substância ingerida); em cada caso concreto impõe-se comprovar (não
presumir), porque se trata de requisito expresso da lei, a alteração
dessa capacidade;
8º)
que algum bem jurídico (vida ou integridade física ou patrimônio)
entrou no raio de ação da real periculosidade da conduta (não é preciso
haver vítima concreta, sim, vítima indeterminada).
Os
requisitos 1, 2, 4, 6 e 7 estão contemplados expressamente na lei.
Logo, devem ser comprovados em juízo de forma indiscutível, valendo
lembrar que a dúvida favorece o réu (in dubio pro reo). A
ausência de prova inequívoca sobre qualquer um desses requisitos conduz à
solução absolutória, no plano criminal, podendo subsistir a infração
administrativa do art. 165 do CTB.
Simples
leitura do tipo legal (do art. 306) já nos sinaliza que o grau da
intoxicação etílica ou por outra substância (6 decigramas ou 0,3
miligramas) constitui apenas um dos fatores de verificação do crime do
art. 306. Um, dentre oito (ou, no mínimo, um além dos outros cinco
requisitos expressos na lei 1, 2, 4, 6 e 7). Essa é a nova configuração
do crime de embriaguez ao volante. Bastante complexa. Tudo deve ser
provado. Tudo que o legislador escreveu na lei deve ser comprovado,
porque se trata de requisito típico.
Pode
ser que aqui se repita a mesma discussão anterior se era ou não
necessário comprovar o requisito dos 6 decigramas de álcool por litro de
sangue (assim estava redigida a lei anterior). A polêmica durou uns 3
anos, até que o STJ tomou posição no sentido de que obrigatoriamente
cabia à acusação comprovar essa exigência típica legal. Vejamos:
HABEAS
CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. AUSÊNCIA DE
EXAME DE ALCOOLEMIA. AFERIÇÃO DA DOSAGEM QUE DEVE SER SUPERIOR A 6
(SEIS) DECIGRAMAS. NECESSIDADE. ELEMENTAR DO TIPO.
1.
Antes da edição da Lei nº 11.705/08 bastava, para a configuração
do delito de embriaguez ao volante, que o agente, sob a influência de
álcool, expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem.
2.
Entretanto, com o advento da referida Lei, inseriu-se a
quantidade mínima exigível e excluiu-se a necessidade de exposição de
dano potencial, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a
figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração
de álcool no sangue o que não se pode presumir. A dosagem etílica,
portanto, passou a integrar o tipo penal que exige seja comprovadamente
superior a 6 (seis) decigramas.
3.
Essa comprovação, conforme o Decreto nº 6.488 de 19.6.08 pode ser
feita por duas maneiras: exame de sangue ou teste em aparelho de ar
alveolar pulmonar (etilômetro), este último também conhecido como
bafômetro.
4.
Cometeu-se um equívoco na edição da Lei. Isso não pode, por
certo, ensejar do magistrado a correção das falhas estruturais com o
objetivo de conferir-lhe efetividade. O Direito Penal rege-se, antes de
tudo, pela estrita legalidade e tipicidade.
5.
Assim, para comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo
art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, é indispensável a prova
técnica consubstanciada no teste do bafômetro ou no exame de sangue.
6. Ordem concedida (HC 166.377-SP, DJ 10/06/2010)
Com
a nova lei e atendendo a lógica do julgado acima compete à acusação
provar, pelo menos, cinco requisitos: 1, 2, 4, 6 e 7. O que está na lei
tem que ser devidamente evidenciado dentro do processo criminal. A
infração penal nova se tornou muito complexa. Não há margem nenhuma para
presunções contra o réu. O direito penal não admite presunções contra o
réu. Não se trata de crime de perigo abstrato, que se contenta com a
mera constatação da taxa etílica no sangue. Não é mais assim. A taxa
etílica comprova o grau da intoxicação, mas não revela, por si só, a
forma da condução do veículo, nem a alteração na capacidade psicomotora.
Além
da ingestão da substância, é preciso comprovar a forma de condução do
veículo (influência) bem como a capacidade psicomotora alterada do
condutor. Um é objetivo enquanto o outro é subjetivo. Os órgãos
repressivos tendem a buscar facilidades, por meio de presunções. Mas
nada disso vale para o juiz. Dentro do processo criminal, ou há provas
de todos os requisitos legais, ou não há. E a dúvida, como sabemos,
favorece o réu. De modo algum nos parece correta a interpretação de que
estamos diante de um crime de perigo abstrato. No mínimo, um perigo
real, ou seja, uma conduta revestida de periculosidade concreta, efetiva
(tanto que a lei fala em influência e capacidade psicomotora alterada).
São essas exigências legais que revelam a periculosidade real da
conduta. Não é qualquer conduta que configura o crime do art. 306.
A tragédia nacional das mortes no trânsito está retratada nos levantamentos do institutoavantebrasil.com.br
(mais de um milhão de mortos no trânsito de 1980 até hoje). O
legislador prometeu que iria endurecer o Código de Trânsito. E endureceu
(aumentou a multa, por exemplo). Mas colocou na lei uma série de
exigências de difícil comprovação concreta. Flexibilizou nos meios
probatórios (isso é verdade), mas colocou na lei requisitos de relativa
dificuldade de evidenciação (dirigir sob a influência e capacidade
psicomotora do agente).
Recordemos o texto legal: “Art. 306. Conduzir
veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da
influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine
dependência”. O grau da taxa etílica é só um indício do crime do art.
306, que exige do juiz uma operação valorativa complexa, que vai passar
pela análise de um mundo de circunstâncias, destacando-se, dentre
outras, as seguintes:
Resolução 206/2006 do Contran
A
Resolução 206/2006 do Contran determina que o agente público, no
momento em que se depara com um condutor suspeito, faça o seguinte:
Relato:
a. O condutor:
i. Envolveu-se em acidente de trânsito;
ii. Declara ter ingerido bebida alcoólica;
Em caso positivo, quando:
iii. Declara ter feito uso de substância tóxica, entorpecente ou de efeito análogo.
Em caso positivo, quando:
iv. Nega ter ingerido bebida alcoólica;
v. Nega ter feito uso de substância tóxica, entorpecente ou de efeito análogo;
b. Quanto à aparência, se o condutor apresenta:
i. Sonolência;
ii. Olhos vermelhos;
iii. Vômito;
iv. Soluços;
v. Desordem nas vestes;
vi. Odor de álcool no hálito.
c. Quanto à atitude, se o condutor apresenta:
i. Agressividade;
ii. Arrogância;
iii. Exaltação;
iv. Ironia;
v. Falante;
vi. Dispersão.
d. Quanto à orientação, se o condutor:
i. sabe onde está;
ii. sabe a data e a hora.
e. Quanto à memória, se o condutor:
i. sabe seu endereço;
ii. lembra dos atos cometidos;
f. Quanto à capacidade motora e verbal, se o condutor apresenta:
i. Dificuldade no equilíbrio;
ii. Fala alterada;
Afirmação expressa (do agente público) de que:
De acordo com as características acima descritas, constatei que o condutor [nome do condutor] do veículo de placa [placa do veículo], [está/não está]
sob a influência de álcool, substância tóxica, entorpecente ou de
efeitos análogos e se recusou a submeter-se aos testes, exames ou
perícia que permitiriam certificar o seu estado.
A
lei nova, como afirmamos, pode ser interpretada de duas maneiras: (a)
basta a comprovação dos incisos I ou II do § 1º e isso já presume a
capacidade psicomotora alterada (crime de perigo presumido) ou (b) a
capacidade psicomotora alterada tem que ser comprovada em cada caso
concreto. Os órgãos repressivos, como afirmamos, tendem a adotar a
primeira interpretação (visto que facilita a comprovação do crime). Mas
ela não é correta (data vênia). Porque o tipo penal não é constituído
apenas do inc. I, do § 1º, do art. 306. E tudo que está na lei (no caput) tem que ser comprovado (quando se trata de um tipo penal).
Independentemente
da opção dogmática (crime de perigo concreto ou abstrato), o que está
na lei tem que ficar devidamente evidenciado dentro do processo.
E
porque que a mera constatação dos 6 decigramas não é suficiente para a
configuração do crime? Porque o sujeito pode beber 2 copos de cerveja,
por exemplo, e continuar com sua capacidade psicomotora inalterada.
Antes
a lei se contentava com 6 decigramas de álcool por litro de sangue. Era
só isso. Agora é preciso que o condutor esteja com a capacidade
psicomotora alterada, em razão da influência gerada pela ingestão do
álcool ou outra substância, ou seja, é necessário que rebaixe o nível da
segurança viária, por meio de uma conduta realmente (efetivamente)
perigosa. Nenhuma presunção preenche esse requisito legal.
Ele
deve ficar devidamente comprovado no processo. Não é qualquer conduta
que configura o crime. A lei quer que o condutor conduza o veículo
influenciado pelo álcool ou outra substância (daí a necessidade de se
verificar a forma de condução). E mais: que o agente esteja com sua
capacidade psicomotora alterada.
É
preciso uma forma de condução e um condutor que rebaixe concretamente
(realmente) o nível da segurança viária. Não é preciso ter vítima
concreta. Não é preciso matar ninguém nem gerar qualquer tipo de
acidente. Estamos diante de uma antecipação da tutela penal. Basta o
perigo, mas ele deve ser real (por exigência da lei). Basta a
comprovação de que o agente não estava em condições de dirigir com
segurança (capacidade psicomotora alterada), o que se evidencia por
qualquer meio de prova.
Vamos
exemplificar: quem ingeriu álcool ou outra substância e dirige de forma
anormal (em zigue-zague, por exemplo) ou está visivelmente
(ostensivamente, notoriamente) embriagado (não conseguindo sequer
caminhar sozinho, por exemplo) ou tem 1,5g de álcool por litro de sangue
ou mais (situação inequívoca de embriaguez, com patente redução da
capacidade de dirigir com segurança), está praticando o crime do art.
306.
Nessas situações não há nenhuma dúvida. O enquadramento desse condutor no art. 306 se torna absolutamente impreterível.
De
outro lado, se o condutor tem de 6 decigramas a 1,5g de álcool por
litro de sangue ou se somente existem provas clínicas e testemunhais ou
imagens sobre os sinais de embriaguez, tudo depende do caso concreto, da
pessoa concreta, das circunstâncias do fato etc. Cada pessoa reage de
uma forma frente ao álcool (ou outra substância). Conforme sua
quantidade, pode ou não ter sua capacidade psicomotora alterada.
Na
dúvida o juiz deve absolver o réu, enviando cópia de tudo à autoridade
de trânsito para o enquadramento do agente no art. 165 do CTB.
Como
se vê, quem ingere álcool ou outra substância e dirige e for
surpreendido, não vai escapar: ou está praticando crime ou uma infração
administrativa (com duras sanções), salvo casos de tolerância, como a
ingestão de um bombom com licor.
Autor
Diretor
geral dos cursos de Especialização TeleVirtuais da LFG. Doutor em
Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de
Madri (2001). Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo USP (1989). Professor de Direito Penal e
Processo Penal em vários cursos de Pós-Graduação no Brasil e no
exterior, dentre eles da Facultad de Derecho de la Universidad Austral,
Buenos Aires, Argentina. Professor Honorário da Faculdade de Direito da
Universidad Católica de Santa Maria, Arequipa, Peru. Promotor de Justiça
em São Paulo (1980-1983). Juiz de Direito em São Paulo (1983-1998).
Advogado (1999-2001). Individual expert observer do X Congresso da ONU,
em Viena (2000). Membro e Consultor da Delegação brasileira no 10º
Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da
ONU, em Viena (2001).
Fonte: http://jus.com.br/revista/