por Marina Almeida | abril 30, 2014
Grupo de moradores e Ministério Público querem proteger o Parque das Águas de São Lourenço, em Minas Gerais, da exploração da multinacional
Da varanda do apartamento onde mora, Alzira Maria Fernandes olha para o Parque das Águas, em São Lourenço (MG), com tristeza. “Só acha bonito quem não viu como era antes. Eu frequentava muito ali. Era uma maravilha. Agora a Nestlé está acabando com tudo.” A principal preocupação da aposentada não está nos jardins planejados nem na mata nativa que o espaço, de 430 mil metros quadrados, abriga, mas no que ele esconde em seu subsolo: nove fontes de raras águas minerais e gasosas, com propriedades medicinais, que começaram a se formar há algumas dezenas ou centenas de anos.
“Água nenhuma mais tem sabor. A fonte Magnesiana chegou a secar, agora voltou, mas só cai uma tirinha, tirinha. E era bastante”, lamenta Alzira. No sul de Minas Gerais, ela e um pequeno grupo de moradores de São Lourenço acreditam que a exploração das águas para engarrafamento está afetando a qualidade do líquido e a vazão nas fontes. Reunidos na associação Amar’Água, eles tentam lutar contra a gigante multinacional e a legislação brasileira, guiada pela lógica da exploração comercial desse recurso mineral.
Alzira hoje evita ir ao parque, “para não passar raiva”, mas se orgulha de conhecer sua história. “Olha como era bonito. Até o presidente Getúlio Vargas vinha aqui. E hoje está desse jeito…”, diz, ao mostrar fotos antigas, de quando a cidade, surgida em torno de suas águas minerais, era um grande polo de turismo e tratamentos medicinais no Brasil. Mas o saudosismo dá logo lugar ao senso prático. Ela se esquece dos turistas de chapéus e saias rodadas e de suas gavetas sai uma série de documentos que ela empilha sobre a cama. São pareceres ambientais, estudos, laudos e ofícios sobre a exploração das águas minerais de São Lourenço pela Nestlé.
A maior parte dos documentos é do processo de 2001 que o Ministério Público Estadual moveu contra a empresa, depois de protestos da população sobre alterações no sabor e na vazão das águas do parque. Na ocasião, foram encontradas irregularidades na exploração de um poço, o Primavera – aberto sem autorização e cuja água passava por um processo de desmineralização, proibido pela legislação brasileira (link para a matéria com essa história). O poço foi fechado, mas outras questões levantadas na época continuaram sem resposta – como a falta de um estudo maior sobre a região, que permita determinar com precisão a capacidade de reposição dos aquíferos e a quantidade segura de extração de água para garantir a sustentabilidade do recurso.
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Proteção cultural
“Uma água que cura as pessoas é um presente que a natureza nos oferece de graça. É muito especial e o que está acontecendo aqui é um sacrilégio. Essa é uma luta da sociedade civil, de quem está vendo o problema e não tem amarras”, diz a terapeuta Nair Ribas D’Ávila, que é da Amar’Água e participa das mobilizações contra a Nestlé desde 2001. Descontentes com a fiscalização existente – realizada pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e pela Superintendência Regional de Regularização Ambiental (Supram) da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), responsável pelo licenciamento ambiental –, o grupo busca na cultura uma forma de garantir maior controle e proteção à área.
A associação quer transformar o espaço num geoparque, uma área de significativo patrimônio geológico que serve ao desenvolvimento local, sobretudo pelo turismo, e também à proteção e à educação ambiental. “É pelo subsolo que nós estamos lutando”, resume Alzira. Para isso, a Amar’Água entrou com um pedido de tombamento do ‘recurso hídrico diferenciado’ no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do governo federal. A ideia é, após essa fase, solicitar sua inclusão na Rede Mundial de Geoparques (Global Geoparks Network) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
O percurso, no entanto, não deve ser simples. “A água é um bem muito difuso. Também serve ao saneamento e ao abastecimento, por exemplo, por isso a consecução prática deste projeto é mais complicada. Envolve diferentes órgãos, como o Iphan e a Agência Nacional de Águas”, aponta o promotor Bergson Cardoso Guimarães, que coordena 79 promotorias ambientais da região da Bacia do Rio Grande, à qual São Lourenço pertence. Outra questão ainda sem resposta é se esse tombamento impediria a extração de água para o engarrafamento.
Para o promotor, um passo importante, e mais simples, é o tombamento do parque – o único sem nenhum tipo de proteção cultural entre as cidades do chamado Circuito das Águas de Minas Gerais. As fontes foram descobertas numa área particular que nunca passou para a iniciativa pública e, quando a Nestlé adquiriu a Perrier, então proprietária da Companhia de Águas de São Lourenço, em 1992, tornou-se também a responsável pelo parque. Guimarães acredita que a fiscalização e a prestação de contas ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) seria uma forma a mais de resguardar esse bem.
“Hoje é possível juridicamente a empresa destruir todo o parque, porque não há um mecanismo que limite isso. O tombamento submete o bem a restrições, garante a segurança contra a demolição e a obrigação de manter um bom estado de conservação”, diz Marcos Paulo de Souza Miranda, da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais, que entrou com o pedido no Iepha. Ele explica que o mecanismo deve proteger os fontanários, o balneário e o projeto urbanístico do parque, que tem valores culturais, arquitetônicos e históricos de relevância. “Descobrimos, por exemplo, que essas águas são utilizadas desde 1817 pelo menos, e não 1890 como se acreditava”, revela.
Além da preservação do parque e do estímulo ao turismo que um bem tombado pode trazer, a cidade também se beneficiaria com mais recursos do ICMS Patrimônio Cultural, também conhecida como Lei Robin Hood. Essa lei garante para os municípios mineiros com bens tombados um repasse maior do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Os moradores que se mobilizam contra a exploração da Nestlé, entretanto, receiam que o tombamento só do parque se volte apenas para a preservação de aspectos arquitetônicos e históricos, quando o que eles mais temem é a exaustão do aquífero – o reservatório subterrâneo de águas.
Identidade
São Lourenço desenvolveu-se ao redor do Parque das Águas. Hoje, o lago reflete os altos edifícios da Avenida Comendador Costa, onde o trânsito de charretes turísticas se mistura com o de carros e motos da cidade. Lá dentro, em suas novefontes, algumas dos anos 1930, é possível experimentar diferentes tipos de água: magnesiana, alcalina, sulfurosa, ferruginosa e carbogasosa, entre outras. Na Gruta dos Milagres, a imagem de Nossa Senhora dos Remédios, encontrada no local em 1936, guarda centenas de mensagens de agradecimento às curas alcançadas pelo uso das águas. Às portas do parque, em cestas de vime, ambulantes vendem copinhos coloridos para os turistas provarem os sabores característicos de cada água. Mas, nas ruas da cidade, é a garrafa de água São Lourenço que dá forma aos orelhões públicos – sinal de um embate entre os usos tradicional e comercial desse recurso natural.
No Vale do Rio Verde, não apenas a cidade cresceu em torno das águas como também seus moradores, que aprenderam desde cedo a valorizá-las. O turismo ainda emprega boa parte deles, mas sua relação com a região vai além do trabalho e desenvolvimento econômico. Em São Lourenço, água mineral é saúde. A palavra foi a primeira a ser citada como sinônimo do recurso natural por 64,08% dos 412 moradores entrevistados por Alessandra Bortoni Ninis, que estudou o tema em sua pesquisa de mestrado, defendido na Universidade de Brasília em 2006. Em seguida vieram vida (16,99%) e turismo (14,32%).
O estudo também mostrou uma forte relação da população com o consumo desse recurso: 82% dos moradores tinham o costume de beber água mineral, 64% deles diariamente. Poucos, no entanto, eram os que compravam garrafas ou galões da bebida nos mercados: 85,44% deles buscavam a água nas fontes. “A cidade dá um valor altíssimo a sua água, mas não tem acesso”, diz Alessandra, referindo-se à entrada paga do parque. No município, há ainda uma fonte externa que é a mais usada pela população local (60,19% dos entrevistados).
Atento a essa relação diferente da população com suas águas, identificada no levantamento histórico realizado para o pedido de tombamento do parque, o Ministério Público também deve recomendar o registro da utilização das águas minerais na cidade – um mecanismo de preservação da tradição imaterial. “É inédito o registro do uso da água como bem cultural imaterial no Brasil, talvez até no mundo. Esse instrumento pode garantir o direito de eles manterem um relacionamento diferenciado com essas águas, facilitando o acesso dos moradores às fontes e à água do parque, por exemplo”, explica o promotor Miranda.
O registro de bens imateriais, segundo ele, é uma tendência internacional. Em Minas, já foram registrados, por exemplo, o toque dos sinos de São João del-Rei e o modo de fazer o queijo da Serra da Canastra. A promotoria deve recomendar o registro após a conclusão do tombamento do parque, que Miranda acredita estar concluído ainda este ano.
Polêmica
Para Alessandra, a proteção cultural talvez seja uma saída para a região. “É preciso cuidado com esse patrimônio, que é mundial. Um lugar que concentra nove tipos de água mineral é único. Esse pode ser também um mecanismo de proteção da água mineral, já que não temos um eficiente para a água subterrânea no Brasil”, diz.
A crítica à legislação – que trata o recurso como um minério, regulamentado pelo Código de Mineração, e não segue às diretrizes da Política Nacional dos Recursos Hídricos – também é feita pelo promotor Guimarães. “É preocupante porque as leis muitas vezes são dominadas por um padrão econômico de exploração e crescimento a qualquer custo. A água mineral não é só um minério a ser explorado, é igualmente um bem sociocultural importante para a identidade dessa comunidade”, diz o coordenador regional das promotorias de Justiça e Meio Ambiente da Bacia do Rio Grande. (leia mais sobre a legislação aqui).
Prefeito de São Lourenço pelo segundo mandato, José Sacido Barcia Neto (PSDB), o Zé Neto, como é conhecido, é contrário a esses mecanismos que, para ele, podem burocratizar a gestão. “O tombamento vai engessar melhorias no parque. Precisamos é de uma boa política de relacionamento com a Nestlé e com os órgãos fiscalizadores.” Zé Neto se diz favorável apenas ao tombamento da cobertura vegetal das áreas de recarga. “No aspecto fisiográfico, sim, acho que tem de ter uma caracterização desse tombamento: um prédio naquela mata não pode.”
Exploração
“Nestlé-free zone” (área sem Nestlé) diz o cartaz, com o sinal de proibido sobre o logo da empresa, na porta da casa de Alzira. “Aqui não entra mais nada da Nestlé. Proibi, e quando saio também nunca tomo água da Nestlé. Tomo qualquer outra se for preciso.” Na disputa entre a multinacional e o grupo de moradores, a dificuldade de acesso às informações da empresa alimenta sua revolta. “A gente não tem controle de nada, não sabe quanto sai de água para o engarrafamento, não sabe nem se eles pagam ICMS para cá.”
Entre os documentos que Alzira guarda em sua casa está a cópia de um estudo sobre a região do Circuito das Águas, publicado, em 1998, pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais Serviço Geológico do Brasil (CPRM) – uma empresa pública federal vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Entre as conclusões apontadas na época estava o rebaixamento contínuo dos níveis estáticos das fontes. Ou seja, a distância entre a superfície do terreno e o nível da água dentro do poço, antes de ser iniciado o bombeamento, tinha aumentado. Com isso, a água da fonte alcalina, por exemplo, que antes brotava na superfície, já estava a três metros do chão. Também mostrou que o nível da água no aquífero, o nível piezométrico, havia sofrido rebaixamento.
O estudo ainda apontou que os aquíferos tinham produtividade limitada e que, portanto, as demandas deveriam “limitar-se às adequações existentes”. Também comparou a qualidade química e a vazão das águas de então com um estudo realizado no início do século 20. Os resultados indicaram que houve diminuição em peso dos principais componentes das águas, além de acentuada redução de vazão em duas fontes de São Lourenço. Diz o documento: “possivelmente este fenômeno esteja associado a ações antrópicas como desmatamento em áreas de recarga e à superexploração dos aqüíferos através dos poços em explotação [extração para fins econômicos] e dos novos poços perfurados”.
O promotor Guimarães conta que há muitos questionamentos em torno disso, pois embora o estudo indique a exploração das águas como causa possível dos problemas identificados, não afirma isso com certeza. A conclusão do documento apontou a necessidade de estudos complementares, que permitissem um maior conhecimento da dinâmica dos aquíferos, o controle de fontes potencialmente contaminantes na região e a determinação das reservas de água mineral, com o que seria possível estabelecer “um regime de exploração racional dos aquíferos”.
“É uma área muito sensível, que possui uma condição geológica muito particular, por isso a necessidade de um estudo maior e mais completo”, explica Décio Antônio Chaves Beato, que é hidrogeológo da CPRM e trabalhou na pesquisa de 1998. “O resultado das ações de hoje muitas vezes é percebido apenas no longo prazo e, se descobrirmos o problema só muitos anos depois, talvez seja tarde ou fique mais difícil de revertê-lo”, ressalta. Ele conta que um estudo desse tipo pode levar até quatro anos. Outro risco, diz, vem do fato de a área urbana da cidade estar muito próxima das fontes, por isso seria necessário um grande controle ambiental na cidade.
Novo estudo
A pesquisa mais completa sobre a área, sugerida em 1998, nunca foi feita. “Vamos ao parque e sentimos que a água está diferente. Precisamos de um estudo que compare a qualidade da água hoje com o que era antes, para saber o que está acontecendo, mas parece que isso não é óbvio”, contesta Nair, do Amar’Água.
O promotor Guimarães aponta outras questões importantes sobre a região que precisariam ser esclarecidas, como a determinação de onde fica a área de recarga de água dos aquíferos, das áreas que não podem ser urbanizadas por conta disso e se há algum problema de contaminação. “Só que esses estudos ficam caros e precisa haver uma demanda política para a CPRM, pois se trata de uma empresa pública”, diz.
Em busca de apoio para a solicitação desse novo estudo, o grupo Amar’Água entrou em contato com deputados mineiros. Em outubro, o relator do projeto do novo Código de Mineração na Câmara, Leonardo Quintão (PSDB), protocolou um ofício junto à CPRM solicitando que fosse verificada a possibilidade de elaboração de um novo estudo. “Mas não tivemos mais retorno”, conta Alzira. Quintão não atendeu às solicitações de entrevista da reportagem. Já o deputado mineiro Gabriel Guimarães (PT), presidente da Comissão Especial do Novo Código de Mineração, prometeu acompanhar a questão: “Esse é um pleito justo, legítimo, e me comprometo publicamente a acompanhar o andamento desse estudo que é fundamental para a preservação das águas e a sustentabilidade da região.”
“Segundo a Nestlé, ela extrai menos da metade do que está autorizada pelo DNPM. Sem esse estudo, fica difícil, senão impossível, de dizer se há ou não superexploração”, ressalta o promotor Pedro Paulo Barreiros Aina, que instaurou a Ação Civil Pública contra a empresa em 2001 e também defende a necessidade de um estudo novo. Ele explica como é definido o limite de explotação pelo DNPM: “O órgão utiliza um teste de bombeamento para verificar quanto tempo o poço leva para se recuperar depois de a água ser bombeada por um certo número de horas”.
Procurada pela reportagem, a Nestlé informou, em resposta por e-mail, que em 2013 extraiu apenas 44% do volume de água total autorizado pelo DNPM: “Corresponde ao necessário para o atendimento da demanda de vendas, da comunidade e do fontanário do parque”. O DNPM não atendeu às solicitações de entrevista da reportagem, mas, de acordo com informações obtidas com o órgão por meio da Lei de Acesso à Informação, a capacidade de vazão do poço aprovada é de 10 metros cúbicos por hora, ou seja, 10 mil litros por hora, por um período máximo de 12 horas por dia. Isso tanto para abastecer a indústria, o bebedouro do Parque das Águas e o Fontanário Público (água gasosa).
A empresa não divulgou a quantidade extraída, mas segundo os cálculos feitos pela reportagem, a quantidade deve ser de cerca de 1,6 milhão de litros por mês, que correspondem a 44% dos 3,6 milhões de litros autorizados pelo DNPM. Em um ano, a empresa deve retirar, portanto, uma média de 19 milhões de litros de água.
Divulgação de pesquisas
Presidente da Comissão das Águas da Câmara Municipal de São Lourenço, o vereador Agilsander Rodrigues da Silva (Partido Social Liberal – PSL), o Gil, conta que, em 2010, foi feita uma avaliação do aquífero de São Lourenço pela universidade suíça Neuchatel, promovida pela Nestlé. “Fiz um requerimento na Câmara questionando esse estudo e pedindo para me mandarem, mas não tive acesso a ele até hoje”. Para o vereador, falta à empresa dar mais publicidade e transparência aos trabalhos e pesquisas que realiza. Ele ainda questiona o motivo de o estudo ser feito por uma universidade estrangeira. “Por que não uma universidade brasileira? Por que não a Universidade Federal de Itajubá, que tem um curso de engenharia hídrica, ou a Unicamp, a USP, que têm um grau elevadíssimo de pesquisa?”
A associação Amar’Água também solicitou acesso ao estudo pelo Conselho Municipal de Conservação e Defesa do Meio Ambiente (Codema), mas o pedido foi negado pelo DNPM por serem dados de “divulgação restrita e sigilosos”, como diz a resposta enviada ao órgão a que Alzira teve acesso.
Segundo a assessoria da Nestlé, os resultados da pesquisa foram divulgados em setembro de 2010 em reunião com o grupo “Amigos do Parque”. Ainda segundo a empresa, a universidade suíça foi escolhida por ter reconhecimento mundial no setor de águas e o estudo foi realizado para garantir a explotação sustentável das águas para engarrafamento e devidamente validado pelas autoridades fiscalizadoras. A empresa, no entanto, não enviou uma cópia do estudo, como solicitado pela reportagem.
“A comunicação dessas empresas com a população é muito difícil. Elas se respaldam muito no sigilo industrial para não divulgar certas informações. Mesmo para a Justiça dificultam o acesso a certos dados”, pontua Guimarães. O promotor conta que há um novo inquérito civil em curso, que analisa se as reclamações da população sobre a exploração das águas procedem e o que pode ser feito judicialmente. “Apuramos responsabilidades, se há dano ou perspectivas de dano que possa ser evitado, de uma fonte se extinguir, por exemplo”, explica. O inquérito está em fase de perícia técnica.
Urbanização
Afastando-se do Parque das Águas, dos cafés, restaurantes e lojas de artesanato, doces e queijos que o cercam, vemos novos bairros em construção. São residências de veraneio, condomínios e hotéis. Castelinhos em estilo europeu que convivem com casas de campo brasileiras e habitações populares. Cercado por sete colinas, o município de 41 mil habitantes e 58 quilômetros quadrados quer crescer.
O turismo ainda é o principal motor da economia de São Lourenço, que tem o segundo maior número de leitos em hotéis do estado, atrás apenas da capital, Belo Horizonte. Mas São Lourenço diversificou suas atividades nos últimos anos e hoje é também um polo regional de serviços de saúde, educação e comércio. “Na última década, a cidade saiu da faixa de 600 pontos comerciais para 1.600. As fábricas de doces e malhas se profissionalizaram. Hoje exportam, e o número de turistas tem aumentado de 12% a 17% ao ano”, diz o prefeito Zé Neto.
Para o promotor Bergson Guimarães, no entanto, o descontrole da ocupação das áreas de recarga – onde a água da chuva, que irá se tornar mineral, se infiltra no solo – e o aumento das fontes de poluição podem ter consequências até mais graves que a própria exploração comercial da água. “Sem conhecimento técnico-científico dessa área, ela pode estar sendo impermeabilizada de forma irresponsável”, diz.
Overeador Gil acredita que um estudo maior sobre a região, como o solicitado à CPRM, seria importante inclusive para ajudar a redefinir o Plano Diretor do município. “Precisamos atualizá-lo até para assegurar a qualidade de vida em São Lourenço. Já que somos um município muito pequeno, precisamos ter muito cuidado com a expansão urbana. Com esse estudo em mãos, poderíamos mudar o foco dessa discussão, porque teríamos como comprovar onde estão as áreas de recarga.” Ele cita o caso do Conjunto Habitacional Santa Helena, construído em 2011. “Dizem que está numa área de recarga, mas não temos essa certeza e teve autorização do Codema”, explica.
Gerente do departamento de meio ambiente de São Lourenço e membro do Codema, Janimayri Forastieri de Almeida Albuquerque diz que um laudo técnico apontou que aquela área não tinha uma importância tão grande para a recarga, ainda que fosse considerada. A construção do loteamento foi liberada com algumas condicionantes, como o calçamento com paralelepípedos e bloquetes, de modo a facilitar a infiltração de água na área.
“Ficamos preocupados se devemos ou não impedir que uma obra seja construída porque não temos certeza sobre quais são as áreas de captação de água”, conta. Para ela, é importante que seja feito um estudo em toda a região e não só em São Lourenço: “Às vezes deixamos de crescer para poupar um lugar, quando um município vizinho pode estar atacando uma área até mais importante para a recarga. O estudo da CPRM pode esclarecer essa situação e nos dar parâmetros para estabelecer parcerias de proteção dessas áreas.”
Poluição
Outros problemas do crescimento urbano são o lixo e o esgoto da cidade. No município há água encanada para todos, mas o esgoto coletado ainda não é tratado. Em construção, a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) deve ser inaugurada em 2015, segundo o prefeito. Enquanto isso, os detritos de São Lourenço são despejados no rio Verde, numa área a jusante – abaixo – de onde ocorre a captação de água para as fontes, o que, segundo Janimayri, não traz grandes impactos para a água mineral. “Não significa que estamos certos de jogar esgoto, até porque precisamos despoluir o rio”, ressalta.
O professor Reginaldo Bertolo, do Instituto de Geociências da USP, lembra que outro cuidado importante deve ser a eficiência da captação desse esgoto. Como a pressão nesses encanamentos é mínima, quando não negativa – ao contrário do que acontece com a água, que chega às casas com alta pressão –, é muito difícil identificar vazamentos na rede de esgoto.
Já os resíduos sólidos urbanos são despejados num lixão desde 1989. “Como não temos área rural, nem sem água, não temos um local passível de licenciamento ambiental de aterro sanitário”, explica Janimayri. Para resolver o problema, São Lourenço criou um consórcio com os municípios vizinhos e, em parceria com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Política Urbana e Gestão Metropolitana (Sedru), implantará uma usina de triagem e compostagem com embolsamento. “Resumidamente, faremos a triagem, a compostagem e o que sobrar de resíduo orgânico vai ser embalado. Depois de certo tempo, essas grandes embalagens são abertas e o que está ali se tornou um composto orgânico que pode ser usado em áreas de reflorestamento”, explica Janimayri. Ela conta que essa é uma tecnologia ainda inédita no Brasil e seu início está previsto para agosto deste ano. Já o lixão existente deve passar por um processo de recuperação, uma exigência para o licenciamento ambiental.
Retorno
Pela exploração das águas minerais de São Lourenço, a Nestlé pagou ao governo brasileiro R$ 515.107,07 em 2012. Em 2013, até o dia 13 de dezembro, esse valor era de R$ 445.545,41, segundo dados obtidos com o DNPM pela Lei de Acesso à Informação. “O lucro das empresas engarrafadoras é muito maior e elas ainda reclamam da tributação, fazem questionamentos jurídicos”, relata Guimarães.
Como essa água é considerada um recurso mineral, está sujeita a uma contribuição chamada Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem), que é dividida entre União (12%), Estado (23%) e município produtor (65%). Em 2013, São Lourenço deve ter recebido, portanto, cerca de R$ 290 mil pela exploração que a empresa faz de suas águas.
O recurso é a única receita a que têm direito os municípios onde há explotação de água mineral, além do ICMS. De acordo com a legislação, a Cfem para a água mineral corresponde a 2% sobre o faturamento líquido da venda do produto mineral. “Fico preocupado porque o valor é muito pouco perto do que a água representa para o Brasil e para o município”, diz o vereador Gil.
O prefeito Zé Neto concorda que a Cfem é pequena, mas ressalta que a empresa também patrocina eventos da cidade, como o Festival de Inverno. “Às vezes o apoio é na divulgação ou com distribuição de água mineral, outras vezes financeiramente, mas não é essa a grande significação, os valores são muito pequenos. O grande retorno social que eles podem fazer é manter o parque e preservá-lo bem cuidado para atrair turistas”, defende.
Entre os eventos patrocinados pela empresa está a Comenda Ambiental Estância Hidromineral de São Lourenço, em que são condecoradas, no Dia Mundial da Água, personalidades que contribuíram para o desenvolvimento do meio ambiente, da cultura e do turismo. Na entrega das medalhas de 2013, que incluiu dois gerentes da própria Nestlé, o Amar’Água esteve presente, protestando. Em suas camisetas pretas, um leão, símbolo das fontes do parque, chora.
“Os organizadores não gostaram, mas foi um protesto pacífico. Não tinham o que fazer. E conseguimos várias assinaturas para nosso abaixo-assinado”, lembra Letícia Rodrigues, que fez a ilustração das camisetas usadas pelo grupo. A estudante de direito de 19 anos é a mais jovem participante do Amar’Água. Ela, que era criança quando houve a primeira grande mobilização pelas águas de São Lourenço, em 2001, conta que conseguiu alguns apoios na faculdade, ainda que muitos desconheçam as discussões sobre água mineral. “Falta informação, e alguns também não querem saber o que se passa”, diz.
No dia 22 de março deste ano, na entrega da Comenda das Águas, os manifestantes estiveram presentes e foram novamente impedidos de entrar com seus cartazes no espaço reservado ao evento, na praça em frente ao parque. Do lado de fora, fizeram seu protesto.
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Fonte: Agência de Reportagem e Jornalismo investigativo