A seguir cenas do próximo Enem:
— Quem matou o paulista Victor Hugo Deppman, de 19 anos?
a) A arma.
b) A pobreza.
c) A falta de escola.
d) A falta de um parquinho com escorrega na periferia.
e) A falta de verbas para o cinema nacional.
f) O capitalismo.
g) Os católicos e evangélicos.
h) A sociedade burguesa.
i) O sistema.
j) O celular de Victor Hugo Deppman.
k) Todas as respostas anteriores.
Ué, pergunta-se o vestibulando, mas e o assassino? Não foi ele?
Pergunta típica de estudante reacionário, que merece nota zero no Enem. Não entendeu ainda que, no Brasil de hoje, tudo mata, menos o assassino?
É simples:
Quando o desnutrido rouba a maçã da feira, ou o pai falido, um remédio para dar ao filho doente, temos os chamados “crimes famélicos”, que em países civilizados nem chegam a ser considerados crimes.
No Brasil de hoje, graças aos cientistas sociais, todos os crimes se passam por “crimes famélicos”: se o sujeito rouba um celular, é porque ele estava com muita fome de celular e não podia ficar sem internet. Se ele mata alguém enquanto rouba um celular, a fome era muito grande — ou muito antiga, já que uma fomezinha na infância basta para autorizar uma vida inteira de crimes. E, se a fome era muito grande ou muito antiga, a culpa é dos ricos que, segundo esses mesmos cientistas sociais, criaram a pobreza. Mesmo que muitas vezes seja uma pobreza apenas aparente, daquelas com piscina e parabólica, de causar inveja aos pobres da Índia.
O estupro, por exemplo, é um caso óbvio de crime famélico: o sujeito não consegue comer mulher, não consegue nem sair com uma mulher, então precisa forçar a barra para dar umazinha. Que mal há nisso?
O mal está, obviamente, naqueles malditos pastores evangélicos que insistem em dizer aos pobres brasileiros que, mesmo para eles, o crime é pecado. Como eles ousam tornar os pobres tão apáticos? Não leram Marcuse? Não leram Hobsbawn?
A taxa irrisória de delinquência entre os pobres evangélicos é mesmo um crime: um crime indesculpável contra a tese da correlação causal entre pobreza e criminalidade. Veja só como a fé é alienante: o sujeito, em vez de aproveitar que é pobre para roubar, estuprar e matar os ricos sem peso de consciência, fica lá rezando pai-nosso, ave-maria, e não furta nem uma hóstia!
Entre o apelo ao crime e o apelo à fé; entre a palavra dos cientistas sociais e a dos bispos, que há décadas disputam a alma dos pobres brasileiros, ele repete a dos bispos. Fica parecendo até que a ação humana não depende diretamente da situação econômica, mas da interpretação que se faz dela, de acordo com crenças e valores disseminados pela classe letrada, da qual participam os cientistas sociais e os bispos. Mais um pouco e até os psicopatas acreditam que têm escolha!
Não é porque a maioria dos pobres nas favelas e periferias não delinque nem mata que o Estado vai culpar os que delinquem e matam, sobretudo se menores de idade. Livros, teses, jornais e ONGs progressistas fizeram chegar até estes a ideia de que o crime é não apenas justificável nessas circunstâncias, como é sem dúvida o melhor a fazer; de modo que a culpa não é deles se ainda há quem prefira Jesus Cristo.
Se as noivas celebram despedida de solteira com vários go-go-boys, por que os pobres de 17 anos não podem celebrar despedida de menoridade com um cadáver? Isto sim é um direito humano. Gilberto Carvalho e Michel Temer são muito coerentes em defender os jovens assassinos contra essa meia dúzia de reacionários que critica o limite de 3 anos de recolhimento, previsto pelo artigo 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Eles querem o quê, afinal? Que os menores passem muitos anos na cadeia?
Só falta dizer que a precariedade do sistema carcerário não é motivo para deixar os assassinos nas ruas, matando a população. Só falta acusar o governo de descuidar das prisões para ter uma desculpa a mais para liberá-los. Só falta explicar o índice de 70% de reincidência criminal em função justamente da suavidade das penas, da sensação de impunidade e do descuido prisional. Só falta propor a reeducação do imaginário dos presos pela leitura de Dostoiévski. Só falta alegar que Deppman estaria vivo se o assassino tivesse ficado preso nas duas vezes em que fora detido por roubo. Só falta espalhar que em um monte de países civilizados a maioridade penal se dá antes dos 18 anos. Só falta declarar que os bandidos adultos usam os adolescentes intocáveis como mão de obra do crime. Só falta lembrar que os próprios pobres são suas principais vítimas, inclusive dos 50 mil homicídios por ano no país. Só falta afirmar que o Brasil só será mais seguro quando os bandidos tiverem tanto medo das consequências de seus crimes quanto os humoristas têm das de fazer piada com Alá e Maomé.
É muito reacionarismo para uma guerra civil só! O Estado brasileiro não está aqui para aterrorizar bandidos. O Estado brasileiro está aqui para ser uma mãe para eles, como aquela da música “Meu guri”, do companheiro petista Chico Buarque.
Que mal há no caso paulista se o assassino “dimenor” — com sua fome de matar temporariamente saciada — já foi recolhido, sem legenda, nem iniciais? "Eu não entendo essa gente, seu moço/ fazendo alvoroço demais”... Só porque daqui a três anos ele estará nas ruas, de ficha limpa, como um exemplo de que o crime compensa? Dependendo do ódio pela vítima no caso de homicídio ou do tesão, no de estupro, talvez valha mesmo a pena arriscar um período de recolhimento, e daí?
Todo mundo sabe de quem é a culpa. Todo mundo sabe que a resposta oficial de políticos, juristas, jornalistas, cientistas sociais e demais membros das classes falantes brasileiras para a família de Victor Hugo Deppman e para toda essa gente reacionária com fome de justiça é a reposta “k”:
Fonte: Jornal Polêmica