MARTIN, EU TAMBÉM TENHO UM SONHO
Por Maurício Gadbem em "Associações Livres"Foto de PierreVerger |
ESTAVA ISOLADO em minha ilha digital – o ano era 1963 – unindo minhas mãos as outras milhares de mãos que aplaudiam o discurso/manifesto de Martin Luther KING, no qual ele pedia, mais que equiparação de direitos aos negros, que se faça JUSTIÇA sobre a terra. O sonho de um mundo colorido aos pretos e brancos da terra. Acordado, sonhando. As palavras de Mr. King ecoam, cinqüenta anos depois, ecoam e calam fundo meu coração. É impressionante sua atualidade.
ESTAVA EU, isolado em minha ilha digital – o ano é 2013 – e recebo como de dentro de uma garrafa que navegou ondas na internet, um pedido de socorro: Maria Angélica RAPHAEL pede, mais que equiparação de direitos aos negros, que se faça JUSTIÇA sobre a terra. Ela se desnuda quando fala do envolvimento de seu filho com as drogas. E se diz ameaçada, com muito medo, e pede socorro.
“Não podemos ficar satisfeitos enquanto o negro for vítima dos horrores incontáveis da brutalidade policial”, diz Martin.
“Aproveitando a deixa, quero deixar aqui expressado que meu filho desde domingo está sendo ameaçado por um policial”, diz Maria.
Martin é Mártir. Maria é nossa Martin.
O MÁRTIR É aquele que morre pela fé. Maria Angélica é uma mulher de fé: presidente de uma instituição que agrega cerca de 60 associações de bairros e distritos – sem receber nenhum centavo para exercer esta função – o é mais pela fé de que as coisas podem melhorar. Mulher. Negra. Pobre. Até pouco tempo trabalhava na colheita do café – uma atividade sazonal – para ganhar a vida. Ela se aproxima, neste apelo, a um grupo de vítimas que, por denunciarem o suposto abuso de poder – sob todas as formas – destina-se a serem calados pela força injusta de mãos truculentas.
O MEDO É um sentimento quase insuportável. Apesar disso é um sentimento necessário que, uma vez contido, protege. Mas, é preciso uma mente alargada para contê-lo. Quando isto não é possível – como nas crianças – a tendência de quem se vê ameaçado, é eliminar, pela evacuação sobre o outro, este medo que não foi possível ser sentido. Assim, num processo de ‘identificação projetiva’, é o outro quem passa a sentir o medo. Lembre-se, por exemplo, dos ‘pixotes da vida’ que nos colocam freqüentemente em posição de ameaçados por sua postura arrogante e intimidadora. Exercitam amplamente este mecanismo de negação e subseqüente projeção sobre o outro. Algo que se tornou meio de vida.
DE VÍTIMA A ALGOZ. E há sempre argumentos a serem elencados na aplicação da força. Quando então a questão das drogas está em voga, é mais fácil ainda defender o uso da força contra o drogado. Ninguém responsabiliza o pai ausente que fez o filho e o abandonou, mas culpa o menino que não aprendeu a defender-se melhor na vida e tem no uso de drogas seu refúgio pessoal, ou no pequeno tráfico, sua fonte de conseguir drogas para uso próprio. De fato, vivemos em uma sociedade cindida, que idealiza alguns enquanto marginaliza outros. Não há políticas públicas suficientes para uma abordagem razoavelmente eficaz no tratamento de drogados: o uso de drogas tem sido tratado mais como um problema de polícia que um problema de saúde.
HÁ 50 ANOS o mundo estava dividido entre negros e brancos. Hoje, o preconceito ganhou novos protagonistas que se dividem entre saudáveis e doentes. Há um preconceito contra o doente, em especial, contra os doentes mentais. A constatação de sua existência é vivida como uma afronta ao narcisismo social. Os deficientes, de toda ordem, desequilibram a balança da perfeição na qual nascemos medidos. A feiúra do doente mental – drogados, deprimidos, psicóticos, alcoólatras – agride os modelos de beleza que se espera ver no homem moderno. Enquanto estavam excluídos em suas casas, guetos, leprosários, manicômios, pareciam não existir, mas com as políticas atuais de inclusão, têm sido vítimas de olhares de soslaio e rejeições contumazes, que a despeito do discurso vigente, não encontram oportunidades reais de efetivação de sua cidadania.
O GRITO DE SOCORRO de Miss Queen está doendo em mim. Marias e seus gritos nada angelicais povoam como fantasmas a ilha na qual eu me escondia. Anônimas, pedem um nome. Pedem, não por elas, mas por seus filhos. Pedem agora que empreste a elas minha voz. Cinqüenta anos depois do sonho de Martin, o lombo arcado por pesada sina, o sonho da maternidade conspurcado por abortos sociais e a faca amolada do poder tangendo os pescoços que seguram suas cabeças incrédulas, elas vêm dizer:
“EU TENHO UM PESADELO. Todas as noites, sonho que estou indo visitar meu filho que está preso e eles me revistam junto a outras mães, e nada descobrem, mas hoje, sonhei que quando eles me revistavam eu estava novamente grávida e, ao abrir as pernas, o bebê nasceu, e eles me disseram que ele ia ficar ali mesmo, preso, porque senão ele também ia começar a usar drogas e ia dar muito trabalho. Eu chorava e gritava por minha mãe. As outras mulheres se foram, e eles levaram meu bebê. Eu voltei pra casa. E, desde então, todos os dias, vinha um policial na minha porta pra saber se eu estava grávida de novo”.
MARTIN, EU TAMBÉM TENHO UM SONHO: a dama da justiça abrirá seus olhos sobre todos, e os homens não mais serão julgados pelo que têm, mas pelo que são. A sombra na qual se escondem os excluídos cederá à luz dos direitos constituídos. As mentiras, inibidas pelas verdades reveladas serão veladas. Aos nossos filhos não faltarão seus pais. Os velhos permanecerão vivos na memória dos jovens. Educação não será privilégio das escolas, porque ensinar terá o mesmo valor que aprender. O conceito de saúde não se limitará à ausência de doença. Em nossas mesas não faltará o pão, nem o pai, a mãe e o irmão. Em todas as cidades haverá teatros nos quais, como nas igrejas, todos terão assentos cativos e, aos artistas, será dada a mesma importância que se dá aos santos. Livros serão lidos. Leis serão cumpridas. Laços serão refeitos. Haverá vida antes da morte! E, quando esta chegar, será a última lição de humildade que todos os dias a vida tentou nos ensinar.
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